A FRAGILIDADE IMUNITÁRIA DAS CIÊNCIAS

Em 1981, o filósofo escocês Alasdair C. MacIntyre (1929) publicou um dos mais marcantes livros sobre ética: Depois da Virtude: Um Estudo sobre Teoria Moral (After Virtue: a study in moral theory). Essa obra começava com uma “sugestão inquietante”. O autor convidava os leitores a viajarem a um futuro ficcional em que, na sequência de uma “série de desastres ambientais”, as ciências naturais e os cientistas seriam transformados em bodes expiatórios. Massas enfurecidas atacariam universidades e laboratórios, assassinando e queimando, até que um “movimento político de ignorância voluntária (Know-Nothing)” tomava de assalto o poder e destruía os alicerces do saber científico. Ao fim de algum tempo, a resistência contra a barbárie daria origem a um renascimento da curiosidade científica. Contudo, o que havia sobrado das arruinadas ciências eram meros fragmentos de obras e conceitos (por exemplo, “neutrino”, “massa”, “peso atómico”…), sem contudo existir um efectivo conhecimento das teorias gerais, dos contextos de enquadramento mais vastos dos aparelhos conceptuais e das doutrinas, e ainda menos dos métodos de trabalho. As ciências teriam sido reduzidas, pelo martelo pneumático da ignorância armada, a meras palavras soltas, arrancadas à gramática que lhes poderia dar o sentido e restaurar a vitalidade.

MacIntyre pretendia apenas, através desse exemplo que há 40 anos pertencia ao reino da ficção, revelar a sua visão do estado calamitoso em que se encontrava a ética, quer como disciplina, quer enquanto experiência pessoal e social concreta. Todavia, vistas as coisas sob o prisma dos actuais movimentos “negacionistas” – tanto contra a física das alterações climáticas como contra as ciências biomédicas envolvidas no combate à pandemia de Covid-19 – o pensador escocês acabou, afinal, por profetizar a história do nosso presente. Para que hoje, mesmo em grandes países democráticos, a hostilidade aberta contra o saber científico seja manifestada a alto nível, em favor de interesses e preconceitos instalados, foi preciso que aquilo que conferia dignidade às ciências, e não só utilidade operacional, tivesse sido fortemente erodido por escolhas e políticas concretas.

No último meio século, as ciências foram perdendo a capacidade de autocrítica, que só é possível quando se habita a consciência da pertença a um todo, e se exercita o pensar sobre o sentido, os limites e as finalidades da sua própria missão. A educação científica afastou-se progressivamente dos laços que a filiavam numa tradição de cultura clássica, capaz de relacionar o fazer e o valorar, sendo, pelo contrário, mobilizada numa especialização crescente, vinculada a uma concepção de racionalidade meramente performativa e instrumental. O advento da globalização neoliberal fez o resto. Os Estados deixaram as ciências e os cientistas, incluindo as respectivas carreiras, entregues ao mercado e à maximização dos negócios empresariais. Algumas excepções ocorrem nalguns nichos universitários, e nas áreas do armamento e da defesa dos países imperiais. A ausência de uma verdadeira política de ciência, capaz de sustentar a agenda de uma investigação fundamental e estratégica, sem a pressão do ganho de curto prazo, promovendo a literacia e a comunicação científicas numa óptica de cidadania, debilitou o sistema imunitário das ciências, expondo-o às infecções virais do pensamento mágico e da superstição organizada.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 1 de janeiro de 2022

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