Na noite de 12 de Abril de 1861, o Forte Sunter, na baía de Charleston, Carolina do Sul, foi bombardeado e capturado pelo exército da novel Confederação – oficializada em 4 de Fevereiro de 1861 -, congregando os Estados federados que, depois da vitória presidencial de Abraham Lincoln, tinham começado a romper com os EUA. Nessa altura, os presidentes eleitos tinham de aguardar até 4 de Março do ano seguinte para tomar posse. Nessa longa espera, Lincoln, com a serena tenacidade que o caracterizava, assistiu à rápida erosão da União forjada na guerra de independência e consolidada na arquitectura de compromisso do federalismo constitucional norte-americano. As primeiras palavras de Lincoln foram, simultaneamente, conciliadoras e firmes: os Estados esclavagistas não deviam temer nenhuma iniciativa para abolir a escravatura onde ela já existia. O Sul não podia, contudo, exigir a sua “nacionalização”, isto é, o alargamento da escravidão a toda a União. Por outro lado, Lincoln recusava reconhecer a ruptura unilateral da Constituição federal pelos Estados. A secessão não era um acto de direito, mas de rebeldia. No final do discurso, fazendo apelo a um milagre que sabia ser impossível, o presidente pediu a todos os cidadãos que escutassem os “melhores anjos da nossa natureza” (better angels of our nature). O Forte Sunter caiu, sem mortos, mas com isso a União partiu para a guerra como vítima e não como agressora.
Pode o mortífero assalto ao Capitólio, por parte de uma multidão intoxicada pelos apelos do ainda Presidente Trump, ser comparado com o ataque ao Fort Sunter? O que existe de comum entre Forte Sunter-1861 e o Capitólio-2021 é o facto de ambos marcarem um ponto de não-retorno na história dos EUA. Nem um eventual impeachment fora de horas de Trump, nem uma tomada de posse pacífica de Biden poderão alimentar a ilusão de um fácil regresso à normalidade constitucional. Em 1861, os americanos sabiam com clareza as linhas divisórias e as fronteiras geográficas da diferença. Por isso, ainda hoje, os historiadores mais simpáticos com o Sul preferem chamar à guerra civil de 1861-1865, a “guerra entre os Estados”, cujo culminar seria a transformação de Lincoln no mártir da unidade reconquistada com o sangue de 750 000 vidas. Em 2021, a rebelião partiu do suposto supremo magistrado e guardião da união federal. Trump governou 4 anos com o apoio de uma multidão de legisladores facciosos, sem fibra ética, habituados a servir e servir-se dos “interesses instalados” (special interests). Trump é o resultado de uma longa degradação política, que ele acentuou tentando, até, dissolver os Estados na sua ilimitada megalomania, que não respeita nem factos, nem valores, nem pessoas. Por outro lado, não existe sequer um espaço público comum, com regras e conceitos partilhados. Antes de 1861, as tensões entre o Sul e o Norte foram esgrimidas no Congresso, com argumentos constitucionais, por gente da estatura de John C. Calhoun e Daniel Webster. Trump, pelo contrário, conseguiu não só descer ao nível dos terroristas de Oklahoma City (1995), autodesignados “patriotas”, como substituiu a Constituição pela irracional e intratável contracultura conspirativa das redes sociais. 1861 será irrepetível, mas a violência parece estar pronta a rasgar ainda mais as feridas abertas da democracia representativa. Uma violência difusa, espasmódica e de atrito. Uma mistura de Mad Max com o Regresso dos Zombies.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado na edição do Diário de Notícias de 16 de Janeiro de 2021