II Conferência da ONU sobre os Oceanos revelou a inexistência de santuários livres dos impactos negativos da economia humana. A existência de uma pesca de arrasto, recebendo subsídios públicos, responsável pelo empobrecimento, ou total destruição, de 50 milhões de Km2 (quase 10% de toda a superfície da Terra!), e libertando tanto carbono para a atmosfera como o do transporte aéreo, seria suficiente para demonstrar que existe uma brutal assimetria entre o poderio destrutivo da tecnologia e a anemia das instituições políticas e jurídicas, incapazes de romperem a sua cumplicidade com os interesses económicos que governam o mundo. Apesar de tudo, valeu a pena. Percebemos como a ONU é hoje uma frágil vela esfarrapada, tentando não naufragar sob os impetuosos ventos do futuro. Mas não me atrevo a sugerir que não ter vela alguma fosse preferível à rasgada vela da ONU…
Há pelo menos duas décadas que, ativa ou passivamente, as grandes potências se desinteressaram da ONU. Por isso, cada vez mais, quando o que está em causa é o património comum da humanidade, abandonou-se o recurso a Convenções-Quadro servidas por protocolos vinculativos (como foi o caso da Convenção do ozono de 1985, servida pelo protocolo de Montreal de 1987, ou da Convenção climática de 1992, servida pelo protocolo de Quioto de 1997). Em vez de compromisso, monitorização independente, possibilidade de sanções, as grandes potências preferem “acordos”, que são criaturas inofensivas à margem do direito internacional. Dão muitas palmas e lágrimas emocionadas no final das cimeiras, mas não afetam o rumo dos negócios do mundo. Basta olhar para esse fracasso anunciado, que sempre foi o Acordo de Paris, para perceber o lastimoso estado do “direito das gentes” nesta época do capitalismo neoliberal triunfante.
Ficou visível na Conferência dos Oceanos que o essencial é a urgência de mudar a relação entre a economia e a natureza. A economia sempre dependeu da natureza. O valor económico parasita o valor natural. O problema é que a crise global do ambiente e clima constitui o auge sem regresso de uma economia que devora, simplifica e aniquila a natureza viva. Por isso, poderemos chamar com inteiro rigor à economia entrópica do nosso tempo, uma necroeconomia (uma economia da morte), Na Conferência dos Oceanos vislumbrou-se outra economia. Uma que é capaz de preservar os ecossistemas – criando, por exemplo, áreas marinhas protegidas – aumentando também o rendimento económico de pescarias que respeitem os critérios da sustentabilidade. Uma economia que, em vez de arrasar a vida dos fundos marinhos, a estuda, aprendendo a criar medicamentos, novos alimentos, novos materiais biodegradáveis. Uma economia, que em vez de causar tragédias ecológicas a minerar o petróleo ou minerais raros nessa filigrana delicada que são os habitats do mar profundo, tem a ousadia de olhar para cima da coluna de água, fazendo dos ventos marinhos uma poderosa fonte de energia renovável. A essa economia, que trabalha com a natureza e a vida e não contra elas, poderemos chamar bioeconomia. Sabendo que Portugal está próximo de alargar a sua área de jurisdição oceânica de 1,7 para 3,8 milhões de Km2, 40 vezes a sua área terrestre, então talvez fosse possível vislumbrar uma vereda estreita até ao futuro. Precisamos, todavia, de ter a inteligência e o coração no sítio certo para ousarmos a revolução pacífica da bioeconomia.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 2 de julho de 2022