No passado dia 29 de janeiro morreu em Camberra (Austrália), vítima de um cancro pancreático, o professor Will Steffen, doravante (WS). Para além de uma das figuras científicas mais relevantes das últimas décadas (ver Anexo 1), WS foi um ser humano admirável, com quem tive a honra de durante breves anos estabelecer uma amizade baseada na partilha das mesmas preocupações e esperanças sobre o futuro da humanidade neste frágil e ameaçado Planeta.
Um Pioneiro na organização das Ciências do Sistema-Terra
Will Steffen desempenhou um papel chave no processo de transição de uma visão parcelar e disfuncional, das questões ambientais – que tende a esconder a sua gravidade e complexidade – para uma visão holística, integrada, capaz de oferecer representações com uma sólida base quantitativa e uma rigorosa adesão à realidade concreta. Foi preciso aproximar disciplinas e, sobretudo, pessoas de culturas académicas diferenciadas. Foi indispensável reorganizar projetos científicos, incluindo difíceis estratégias interdisciplinares e complexos modelos de financiamento. Esse caminho, que aprofunda o legado teórico do pensamento sistémico e do esforço de modelação da complexidade que já encontrámos no relatório Os Limites do Crescimento (1972), começou a ser percorrido, com deliberação e consciência a partir da década de 1980 (o fim da guerra-fria libertou meios e vontades para essa expansão).
Nesse movimento transformador, Will Steffen protagonizou um duplo papel inovador. Primeiro, como coordenador executivo do IGBP (Programa Internacional Geosfera-Biosfera) ajudou a consolidar as “ciências do Sistema-Terra” (Earth System science), congregando não apenas as ciências naturais, mas também as ciências sociais e humanas. Segundo, como defensor da proposta do Antropoceno, como uma novel época em que a história da Humanidade se confunde com a história da Terra.
O conceito de Antropoceno foi introduzido em 2000 por dois colegas de WS envolvidos na revolução científica do Sistema-Terra Paul Crutzen e E. F. Stoermer. Trata-se de uma proposta, aprofundada por WS, que traduz com rigor o modo como a recente e dinâmica temporalidade histórica, que se mede em décadas e séculos, foi capaz de se inserir no tempo de longa duração da Geologia, que se mede em milhões e dezenas ou centenas de milhões de anos. A proposta inicial de 2000, sugeria 1750, com o advento da máquina a vapor e da Revolução Industrial inglesa, como a data em que a época geológica do Holoceno (começada, sensivelmente, há 11 700 anos, no final da glaciação de Würms) daria lugar à época do Antropoceno, definida pela capacidade humana de deixar inscrições marcantes e duradouras, por muitos milhões de anos, no software planetário, como é o caso da estrutura química da atmosfera, da camada de ozono, dos grandes ciclos da água, do azoto, do carbono, do fósforo, no equilíbrio da biodiversidade, na temperatura média global de superfície, etc. Posteriormente, os estudos evoluíram no sentido de produzir um modelo do Sistema-Terra e dos seus “limites planetárias”. O modelo tem vindo a ser atualizado, mas inicialmente continha o estudo de nove campos interdependentes – cada com um limite, parâmetros, dados quantitativos com referência comparativa a um nível pré-industrial – e dos seus respetivos processos de interação. O Sistema Terra modelado desse modo, compreendia os seguintes campos e respetivos limites: 1. Alterações climáticas; 2. Taxa de perda de biodiversidade; 3. Ciclo do azoto/ciclo do fósforo – que compreende conjuntamente o limite do fluxo biogeoquímico; 4. Depleção do ozono estratosférico; 5. Acidificação oceânica; 6. Utilização global da água doce; 7. Alteração do uso do solo; 8. Carga atmosférica de aerossóis; 9. Poluição química (Rockström, J., Steffen, W., Noone, K. et al. 2009; Steffen, W., Richardson, K., Rockström, J., et al., 2015).
WS visitou Portugal em 1999, para uma reunião do IGBP que teve lugar no Estoril. Nesse âmbito, visitou a Academia das Ciências de Lisboa. Ficou impressionado pelas cartas geográficas dos nossos navegadores dos séculos XV e XVI e chegou mesmo a escrever que a inspiração para publicar em 2004 a primeira obra coletiva no âmbito das ciências da Terra foi tomada em Portugal: Global Change and the Earth System: A Planet Under Pressure (ver Anexo 3). Em 2012, Paulo Magalhães – o jurista português que desde 2003 iniciara uma verdadeira cruzada científica (à qual me juntei desde o início) pelo Condomínio da Terra (evoluindo depois para Casa Comum da Humanidade- CCH) – apresentou-lhe as suas ideias. WS percebeu de imediato a total congruência entre o trabalho científico da nova visão do Sistema-Terra, em que tinha sido pioneiro, e a revolução do direito internacional público defendida por Paulo Magalhães para resgatar os bens comuns do Sistema-Terra da tutela destrutiva do ainda dominante modelo competitivo, soberanista e predatório (ver Anexo 2). WS abraçou o projeto. Esteve em Portugal em 2013, quando eu e Paulo Magalhães organizámos, por convite da Fundação de Serralves, uma conferência onde essa proposta foi apresentada. Regressaria em 2018, para a cerimónia de transformação da CCH numa ONG. Aceitaria também integrar a direção da Comissão Científica da CCH, sendo uma presença permanente até à sua morte.
WS Deixa uma obra científica essencial para compreender as encruzilhadas do mundo contemporâneo, espalhada por centenas de artigos e livros. Quem o conheceu recordá-lo-á pela humildade, gentileza, capacidade de escuta dos outros, e sobretudo pela enorme generosidade para apoiar, em qualquer lugar do planeta, as boas ideias e projetos em favor da luta contra a autodestruição da humanidade. A morte de WS causa um luto sem fronteiras, mas em Portugal, uma nação que ele guardava no seu coração, a perda da sua inteligência e do seu exemplo é sentida de forma particularmente dolorosa.
Anexo 1: PERFIL BIOGRÁFICO
Will Steffen (William Lee Steffen) nasceu nos EUA, mas foi na Austrália que se afirmaria como cientista e cidadão do mundo. Químico de formação, tornou-se um dos maiores especialistas mundiais em alterações climáticas e mudanças globais. WS deu um contributo decisivo para a consolidação da constelação de Ciências do Sistema Terrestre, que hoje é a fonte mais rigorosa e esclarecida do conhecimento que importa para compreender e enfrentar a crise global do ambiente e clima. Foi Diretor executivo, até 2004, do ambicioso Programa Internacional Geosfera-Biosfera (International Geosphere-Biosphere Programme), que abrangeu todo o globo entre 1987 e 2015. Entre 2000 e 2018 foi co-autor e revisor de cinco dos relatórios e estudos especiais do IPCC (Intergovernamental Panel on Climate Change). Professor Emérito da Escola Fenner de Ambiente e Sociedade da Universidade Nacional da Austrália (Camberra), Will Steffen foi também membro da Comissão do Clima (até à sua extinção pelo governo conservador australiano, em 2013), criador e membro do Conselho para o Clima da Austrália, investigador do Centro de Resiliência de Estocolmo (Suécia) e copresidente da Comissão Científica da Casa Comum da Humanidade, ONG portuguesa com membros em todo o planeta e sede na Universidade do Porto.
Anexo 2: SOBRE A “CASA COMUM DA HUMANIDADE”
“Uma das ideias mais fascinantes [para combater a crise ambiental e climática] foi apresentada pelo jurista português Paulo Magalhães, que desenvolveu o conceito de Casa Comum da Humanidade e argumenta que parte da razão pela qual não podemos forjar um futuro sustentável é que não temos uma estrutura legal que nos permita fazer isso. Quando olhamos para um mapa do Mundo vemos as fronteiras que identificam os Estados-Nação, mas quando subimos ao Espaço vemos um único sistema. A inovação jurídica de Paulo Magalhães foi reconhecer o Sistema Terrestre, não o planeta físico, mas o software, a interface do seu funcionamento, a circulação dos oceanos e da atmosfera, o movimento do carbono, azoto e fósforo à volta da Terra. Portanto, temos esperança de mudar a maneira como pensamos, devido ao facto de vivermos em Estados-Nação, mas partilharmos um único sistema de suporte à vida, o Sistema Terrestre. A inovação de Paulo Magalhães é defender que precisamos de uma nova estrutura legal no direito internacional para nos ajudar a reorganizar a forma como operamos a economia e a sociedade. E que precisamos de ver o Sistema Terrestre reconhecido legalmente como património natural intangível da Humanidade.” Entrevista feita por Geoffrey Holland, coordenador dos “Diálogos MAHB de Stanford” (Millennium Alliance for Humanity and the Biosphere), Universidade de Stanford, EUA. Tradução de Virgílio de Azevedo para a edição do Expresso de 4 de novembro de 2020.
Anexo 3: Bibliografia selecionada de Will Steffen
- Steffen, Will et alia, (2004), Global Change and the Earth System: A Planet Under Pressure, Berlin, Springer, IGBP Series.
- Steffen, Will, P.J. Crutzen, J. R. McNeill (2007), “The Anthropocene: Are Humans Now Overwhelming the Great Forces of Nature? “, Ambio, Vol. 36, Nº. 8, December 2007, pp. 614-621.
- Rockström, J., Steffen, W., Noone, K. et al. 2009. “Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity”. Ecology and Society, 14 (2): 32. http://www.ecologyandsociety.org/vol14/iss2/art32/
- Steffen, W., Richardson, K., Rockström, J., et al. (2015). Planetary Boundaries: Guiding Human Development on a Changing Planet. Science”, 347(6223). doi: 10.1126/science.1259855.
- Paulo Magalhães, Will Steffen, Klaus Bosselmann, Alexandra Aragão and Viriato Soromenho-Marques, eds. (2016), SOS Treaty. The Safe Operating Space Treaty. A New Approach to Managing the Use of the Earth System, Cambridge, Cambridge Scholars.
- Steffen, Will et alia. 2018. Trajectories of the Earth System in the Anthropocene. PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America).
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 8 de fevereiro de 2023, pp. 33-33.