VOLTÁMOS A SER MORTAIS

Nunca é demais repeti-lo. Sobre o futuro não é sensato dizermos muitas coisas. Nem com todo o poder computacional do mundo estaríamos isentos de erro, pois a realidade é infinitamente mais complexa do que a nossa capacidade de a representar. Mas temos o passado. Como o anjo da história, que Walter Benjamin julgou perceber num quadro de Paul Klee (meu artigo DN, 18 01 2020), somos obrigados à procura de um sentido – a partir da leitura das ruínas, sofrimentos, esquecimentos, ilusões e injustiças do passado – que nos ajude a explicar como chegámos até aqui. Sem sentido ficaremos paralisados. Somos criaturas, como nos ensinou Viktor Frankl (1905-1997), sábio sobrevivente do Holocausto, que precisam da semântica tanto como do pão para a boca. Neste confinamento planetário, seguindo a progressão da COVID-19 como quem lê o boletim de baixas de uma guerra, aprendemos que a “normalidade” para onde os mais distraídos querem regressar de armas e bagagens, foi uma longa embriaguez. Agora, somos perseguidos em toda a parte por uma “coisa” invisível (o vírus nem sequer é propriamente um organismo vivo), forjada por uma zoonose num miserável e cruel mercado de animais selvagens em Wuhan. Que o mundo pudesse encapsular-se, talvez na antecâmara de um abismo maior, depois do vírus ter sido propagado à velocidade de cruzeiro das dezenas de milhares de voos comerciais que inundavam os céus, só foi novidade nos detalhes. No essencial, o perigo e a terapia preventiva foi antecipada, não só por cientistas, mas por Bill Gates e Obama. Totalmente em vão.

Estamos agora, derrubados pela embriaguez, caídos no chão. A tentar perceber o que nos aconteceu. Nestes quarenta anos em que globalização e neoliberalismo foram sinónimos, em que os Estados se limitaram a aplanar o caminho para a eficiência dos mercados, consentindo em todos os abusos, existia uma promessa de felicidade universal. A aliança forjada entre o neocapitalismo e a tecnociência – que se transformou no novo “ópio do povo” – encontrou os seus sacerdotes de serviço, transformando ciência em superstição: Bjorn Lomborg, negando o agravamento da crise global do ambiente; Steven Pinker, imitando o Dr. Pangloss, na descrição do melhor dos mundos possíveis; Ray Kurzweil, anunciando uma “singularidade” tecnológica; Nick Bostrom, entre muitos outros profetas do transhumanismo, profetizando a hiperconsciência digital, ou a colonização da galáxia pelas nossas máquinas de IA; o irrequieto Elon Musk, loteando Marte para colonização futura…Da utopia digital, desembarcámos no amargo pesadelo analógico da realidade. Da doença, da angústia, da vulnerabilidade, da economia injusta e entrópica, dos maus governos. Voltámos a ser mortais numa Terra, que foi cantada como sendo da “alegria” na última e maravilhosa poesia de Ruy Belo. Agora, o Jardim do Éden está ferido por dentro, pela destruição do ambiente, pelas alterações climáticas, pela estupidez e pela discórdia. É aí que teremos de lutar, juntos, pela sobrevivência. Com olhos bem abertos.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, dia 18 de Abril de 2020, pp. 24-25

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