Os leitores que têm a gentileza de visitar as minhas crónicas sabem que nestes mais de dois anos de guerra na Ucrânia, envolvendo quatro potências nucleares, tenho alertado, com veemente urgência, para o risco crescente de sermos engolidos num abismo da destruição bélica. Os motivos para isso parecem-me residir na mistura de soberba e amnésia por parte do Ocidente, isto é, dos EUA e da multidão de Estados europeus que se apresentaram ao seu serviço. Soberba, por terem pensado que a Rússia poderia ser tratada como uma potência de segunda categoria. Amnésia, porque na sua conduta, dão sinais de terem esquecido as lições que impediram a guerra-fria de ter conduzido à III Guerra Mundial.
Há uma experiência pessoal, com mais de quatro décadas, na raiz desta minha preocupação. Em março de 1985, escassos dias antes de Mikhail Gorbachev se tornar líder da URSS, foi publicado o meu livro, Europa: O Risco do Futuro (Publicações Dom Quixote). Essa obra continha os resultados de quase dois anos de intensa pesquisa sobre a complexidade da guerra-fria, as suas doutrinas estratégicas, os seus armamentos, os seus dilemas políticos e militares, as suas perspetivas de evolução futura. O motivo que me levou a esse livro ocorreu no Verão de 1983. Nessa altura, uma das canções mais populares nas discotecas alemãs – da autoria de um grupo de rock de Bochum, Geier Sturzflug – intitulava-se “Besuchen Sie Europa, solange es noch steht” (Visite a Europa enquanto ela ainda está de pé). O sucesso popular da banda estava ligado de modo diretamente proporcional à dramática escalada da tensão bélica entre a URSS e os EUA, naquela que ficaria conhecida como a crise dos euromísseis. No dia 1 de setembro desse ano, um voo civil sul-coreano (KAL007) foi derrubado por um caça Su-15 depois de ter entrado em espaço aéreo soviético, morrendo os seus 269 passageiros. No dia 26 desse mês, uma falha informática poderia ter desencadeado uma guerra nuclear por acidente, apenas evitada pela coragem do tenente-coronel Stanislav Petrov (1939-2017), O foco principal era o risco de uma Europa ameaçada pelos planos para uma “guerra nuclear limitada”. Felizmente que com Gorbachev, a sua tentativa de reforma interna do regime soviético, no plano político-social (glasnost) e económico (perestroika) foi acompanhada de uma decidida aposta no desarmamento, que encontrou eco positivo nos líderes da OTAN, em especial em Reagan e Margaret Thatcher. O desmembramento pacífico da URSS em dezembro de 1991, já seria surpreendente. O essencial, contudo, foi ter-se evitando uma III Guerra Mundial que teria dizimado a humanidade e afetado criticamente o ecossistema planetário.
Para quem mergulhou na compreensão do software, delicado e sofisticado da tensão bélica que de 1945 a 1990 dividiu o mundo entre duas potências centrais e seus aliados, respetivamente, os EUA/NATO e a URSS/Pacto de Varsóvia, causa náusea intelectual assistir à repetida tese dos neocons em Washington, de que o Ocidente “ganhou” a guerra-fria. Mais do que um erro analítico, tal afirmação reflete uma profunda cegueira ideológica. Só aprenderemos a lição da guerra-fria se percebermos a sua singularidade em toda a história universal. Pela primeira vez, desde os impérios antigos até à II Guerra Mundial, uma oposição entre duas megapotências dominantes não culminou, depois das habituais guerras indiretas e de procuração entre aliados e vassalos (proxy wars), num conflito total. Que razões explicam a miraculosa singularidade do fim pacífico da guerra-fria?
Charles De Gaulle recordava, em 1963, que tanto para a URSS como para os EUA “o estandarte das ideologias [capitalismo versus comunismo] apenas esconde as ambições”. Isso significava que o comportamento de Washington e Moscovo se pautava, não pela ideologia, mas pelos interesses de conservação e aumento de poder. É a doutrina da razão de Estado, que desde Maquiavel e Richelieu constitui a base das relações entre grandes potências. Isso ficou provado no Pacto Hitler-Estaline de 23 de agosto de 1939. Dois inimigos ideológicos, partilhando de um conjuntural interesse comum, à custa de terceiros. Mais tarde, nos anos 60, quando a China maoísta considerou a URSS como seu inimigo principal, a proximidade ideológica foi esmagada pela antiga rivalidade entre a China e a Rússia (que os EUA bem aproveitaram com Nixon e Kissinger). Por outras palavras, o primeiro passo para percebermos a guerra-fria reside na teoria desenvolvida por Carl von Clausewitz no seu clássico e póstumo tratado, Da Guerra (1832), cuja essência pode ser resumida nas seguintes quatro teses principais: a) os sujeitos da guerra moderna são Estados, dotados de interesses potencialmente idênticos, e por isso motivo de contenda; b) a guerra é a continuação da política por outros meios; c) o objetivo da guerra visa a vitória, que se atinge quando se impõe a nossa vontade política ao inimigo; d) a vitória implica, geralmente, a destruição da capacidade militar do inimigo.
O segundo passo para aprender com a guerra-fria consiste em limitar o que vimos acima, em perceber o modo como ela invalidou o alcance universal da teoria de Clausewitz. Tanto Washington como Moscovo sabiam que com as armas nucleares a realidade da guerra se alterava substancialmente em relação à situação dos campos de batalha napoleónicos, ou das duas guerras mundiais. Com os mísseis balísticos terrestres (ICBM), aéreos (ALBM) ou submarinos (SLBM) um poder de fogo, milhares de vezes superior ao de todas as guerras do passado, podia ser acionado num máximo de 30 minutos! O conceito de frente, de mobilização estratégica, de vitória, no fundo, o léxico da própria racionalidade da guerra estava ameaçado…A melhor expressão desse estado de coisas foi manifestada pelo secretário da Defesa de J. F. Kennedy, Robert McNamara, na doutrina da Destruição Mútua Assegurada (MAD). Contudo, em 1983, tanto no lado ocidental, com a doutrina Rogers (Air-Land Battle), como no lado soviético, com a doutrina do Grupo Operacional de Manobra, do marechal Ogarkov, estavam gizados planos que poderiam ter desencadeado a guerra, mesmo nuclear, na improvável aposta de que seria possível mantê-la dentro de certos limites.
Hoje a rivalidade entre os EUA/OTAN e a Rússia, ambas economias capitalistas, não é ideológica, mas transparentemente situada na esfera dos interesses, que podem ser alvo de negociação diplomática ou de ação bélica. A invasão russa da Ucrânia foi uma violação do direito internacional, sem dúvida, mas alimentada por décadas sucessivas de imposição unilateral de medidas hostis aos interesses confessados de Moscovo. Agora que o Rubicão da guerra foi ultrapassado há apenas dois caminhos. O primeiro, como sempre tenho escrito, implica baixar a tensão, conseguir o calar das armas com as tréguas duradouras de uma paz imperfeita, tendo em vista a lição maior da guerra fria: com armas nucleares e outras de destruição maciça, a guerra não termina em vitória, mas em aniquilação mútua. A guerra entre gigantes nucleares deixou de ser um instrumento, para se transformar no principal inimigo da política. O segundo caminho, como parece estar a ser dominante no amnésico revisionismo estratégico do Ocidente, consiste em seguir em frente na preparação de uma guerra frontal com a Rússia, como se estivéssemos antes de 1945. Seria o caminho sem regresso rumo à maior carnificina da história mundial.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, 30 de março de 2024, página 9.