Há escassas semanas, a comunidade internacional parecia unida em Glasgow perante a urgência de combater a maior e mais definitiva ameaça à sobrevivência da espécie: a crise global do ambiente e clima. Todos os dias, os Estados faziam promessas de mudança de estilos de vida, de produção e de consumo, para evitar que a nossa casa comum se torne inabitável. Hoje, um país soberano luta pelo direito a existir, e a Europa assiste à maior vaga de refugiados desde 1945. A invasão russa da Ucrânia – mostrando que o nacionalismo tóxico ainda tem potencial para incendiar o mundo pela terceira vez – despertou a antiquíssima e cega fúria dos demónios bélicos que jazem no nosso reportório genético e histórico. Putin, com irracional desmesura, afogou o milagre da implosão pacífica da URSS sob Gorbachev nas águas sombrias de um conflito convencional, com potencial para se alargar à escala global, e intensificar para além da linha vermelha do nuclear. Neste artigo, tento partilhar com o leitor os dois perigos que teremos de enfrentar e vencer se quisermos evitar uma guerra em que só haverá vencidos.
Primeiro perigo: evitar a vertigem da escalada
Esta não é uma guerra como as outras. A sua avaliação não pode ser efectuada apenas pela contabilidade dos efectivos e dos arsenais. Se assim fosse, a Rússia seria esmagada com facilidade. A NATO, composta por 30 países, supera em todos os indicadores a Rússia: 6,4 vezes mais na população; 25 vezes no PIB;17 vezes na despesa militar. Para perceber esta guerra, é preciso recordar as lições, infelizmente esquecidas, da guerra-fria. As armas nucleares, com o seu potencial quase instantâneo e ilimitado de destruição, vieram modificar as regras milenares da guerra, aquelas que prevaleceram desde Sun Tzu (544-496 A.C.) até Clausewitz (1780-1831) e o seu tratado póstumo Da Guerra (1832). Do mesmo modo que a física quântica alargou o campo da física newtoniana, sem contudo abandonar o objecto comum a ambas, o factor atómico introduziu um novo e extremo campo na teoria geral da guerra. Até aqui, a agressão de Putin tem-se pautado por padrões clausewitzianos, tal como o envolvimento da NATO apoiando a Ucrânia apenas com armas convencionais.
Quais são os princípios que se aplicam na teoria clausewitziana da guerra? 1. A guerra é um instrumento dos Estados, destinado a servir os seus interesses e objectivos, quando a diplomacia falha; 2. Na guerra, a política comanda a vertente exclusivamente militar: a gramática militar deve estar subordinada a lógica política (“Ela [guerra] tem, sem dúvida, a sua própria gramática [seine eigene Grammatik], mas não a sua própria lógica [seine eigene Logik ]”, Clausewitz, Vom Kriege, Ullstein: 675); 3. A guerra tem como objectivo a vitória, a imposição da vontade do vencedor ao vencido. Para isso, importa eliminar a capacidade do inimigo através de uma “decisão pelas armas” (Waffenentscheidung), que lhe retira a capacidade continuar a combater. Mesmo depois da entrada das armas nucleares na cena histórica, todas as guerras têm obedecido a este guião, que garante a cada vencedor o seu respectivo vencido. Contudo, as armas nucleares, mesmo em silêncio, têm estado presentes como moderador, fazendo com que superpotências como os EUA (Vietnam) ou a ex-URSS (Afeganistão) tenham aceitado derrotas sem subir ao patamar nuclear.
A invasão russa tem permanecido num plano convencional, numa luta entre Golias (o invasor) e David (o invadido). Contudo, se a NATO vier a intervir directamente (por exemplo, fechando o espaço aéreo à aviação russa, como tem sido reclamado à exaustão pelo presidente ucraniano), isso transformaria a Ucrânia num campo de batalha frontal entre a Rússia e a NATO, invertendo a balança de forças, podendo levar com grande probabilidade – inscrita, aliás, na actual doutrina russa de uso de armas nucleares tácticas – a Rússia a ultrapassar o limiar atómico para compensar a esmagadora superioridade, sobretudo qualitativa, das forças convencionais da NATO. Um salto quântico na guerra na Ucrânia, não significaria, de imediato uma “destruição geral assegurada” (mutual assured destruction), conceito cunhado por Robert McNamara (1916-2009), secretário da Defesa de J. F. Kennedy. Noutro livro, hoje esquecido, mas que foi uma bíblia para decisores durante a guerra-fria, Sobre Escalada. Metáforas e Cenários (1965), o seu autor, Herman Kahn (1922-1983), identificou 44 degraus entre o início de conflitualidade e o cume apocalíptico de uma irrestrita guerra atómica de aniquilação. Nos arsenais da Rússia ou da NATO não faltam armas atómicas de todos os tipos, potências e alcance. Na presente situação de guerra de posições a que se chegou, a opção para os beligerantes consistirá na escolha entre um cessar-fogo, na base do menor denominador comum, ou em porfiar numa ilusória “vitória” para um dos lados, aumentando o sofrimento e a destruição, alimentando a potencial deriva para o degrau sem retorno do nuclear, com risco muito forte de escalada descontrolada.
O segundo perigo: evitar o erro de uma nova Guerra-Fria
Se o sucesso real da guerra se avalia no plano político, então o aventureirismo de Putin para além de provocar um sismo geopolítico mundial de magnitude ainda incerta, conseguiu o contrário do que pretendia. O reforço e alargamento da NATO tornaram-se inevitáveis. Putin, ao arriscar a paz mundial, para satisfazer a sua visão desmesurada do interesse nacional russo, cada vez mais confundida com a sua megalomania autoritária, é inegavelmente o culpado directo desta guerra. Contudo, importa que o Ocidente seja capaz de não cometer outra vez o erro que contribuiu para tornar possível um líder como Putin.
Esta guerra tem suscitado nos EUA a revisitação do debate interno nos anos 90 sobre a NATO e as relações com a Rússia. A condenação de Putin não dispensa a necessidade de perceber como é que a sua ascensão foi possível, e como é que o Ocidente, em particular a política externa dos EUA o ajudou a consolidar-se no poder. Resumidamente, no tempo das administrações Clinton travou-se um debate entre duas linhas de pensamento sobre o que fazer com a NATO. Uma primeira linha, forjada na guerra-fria, defendia – a meu ver acertadamente – a necessidade de aproveitar o colapso da URSS para ajudar a nova Rússia numa transformação democrática, respeitando as suas percepções de (in) segurança estratégica. Isso significava várias opções alternativas: a) não alargar a NATO; b) adiar esse alargamento de modo a não favorecer as forças nacionalistas em Moscovo; c) integrar os países da ex-esfera soviética na União Europeia Ocidental, em alternativa à NATO. A outra orientação, que prevaleceu, era simples e linear: a URSS perdera a guerra-fria; a Rússia era um dos escombros do império desfeito; os resmungos de Moscovo podiam ser ignorados, pois o país tinha-se transformado numa “potência de terceira categoria” (third-rate power); a expansão da NATO era uma oportunidade que não poderia ser perdida. A esta linha dura pertenciam a falecida secretária de Estado Madeleine Albright, o seu vice, Strobe Talbott, mas também o então senador Joe Biden, entre muitos outros.
A luta contra o alargamento da NATO, movida por académicos, diplomatas e políticos norte-americanos, é extensa e merece uma reflexão mais alargada, mas a síntese do essencial, que esta guerra confirma plenamente, foi escrita pelo maior diplomata dos EUA no século XX, George F. Kennan (1904-2005). Primeiro, num artigo no New York Times (05 02 1997), intitulado “Um erro fatal”. Depois, numa entrevista a Thomas L. Friedman, no mesmo jornal (02 05 1998). Será útil reler este excerto: “As nossas [EUA] divergências na Guerra Fria eram com o regime comunista soviético. Agora estamos a voltar as costas a esse povo que organizou a maior revolução sem derramamento de sangue da história para remover o regime soviético. A democracia russa é tão avançada, ou até mais, do que a desses países que acabámos de prometer defender da Rússia. É claro que irá acontecer uma má reacção da Rússia, e nessa altura [os defensores da expansão da NATO] irão dizer que tinham avisado que é assim que os russos são – mas isso é simplesmente errado”.
Evitar o agravamento da situação implica medir com prudência as sanções contra o regime de Putin no médio e longo prazo, impedindo que atinjam os alvos errados. A ideia insensata do ex- PM finlandês, Alexander Stubb, de que seria possível fazer da Rússia uma enorme Coreia do Norte, é um bom exemplo de total falta de realismo. Uma coisa é atingir os oligarcas do círculo de Putin, outra coisa é pontapear as teias de interdependência global – financeiras, económicas, comerciais – da ordem neoliberal de que os líderes ocidentais tanto se orgulham. Numa altura em que na UE se considera inevitável aumentar as taxas de juro para impedir o descontrolo da inflação, é absurdo promover sanções que se vão repercutir imediatamente sobre os nossos consumidores e o nosso tecido empresarial, de modo desigual entre países e regiões. E que dizer das consequências trágicas para África e Médio Oriente que a escassez e carestia dos cereais vai implicar muito em breve?
Isolar completamente a Rússia, cortando-lhe os laços de comunicação, violando uma das lições da guerra-fria, que é a de manter uma “cooperação entre inimigos” para evitar o descarrilar sem retorno do pesadelo atómico, seria sempre um erro. Nas presentes circunstâncias, esse erro seria duplo: a) iria reforçar a autocracia de Putin, enfraquecendo ainda mais as forças de oposição interna, as únicas que podem operar uma “mudança de regime” em Moscovo; b) colocaria gigantes como a China e a Índia, perante o imperativo de escolher entre Moscovo e o Ocidente, o que poderia resultar numa resposta desagradável. Erguer um novo muro de Berlim, desta vez a partir do Ocidente, iria não só impedir a indispensável unidade planetária que necessitamos para enfrentar a disrupção ambiental e climática, que cresce a cada minuto, indiferente ao nosso calar de baionetas, como levaria a uma nova corrida aos armamentos e à crescente probabilidade de uma suicidária guerra mundial.
Viriato Soromenho-Marques
Ensaio publicado no Diário de Notícias, edição de 26 de Março de 2022, pp. 8-9.