Se no futuro existir oportunidade para analisar o processo entrópico em que a UE se encontra hoje mergulhada, certamente que o estudo do Parlamento Europeu (PE) servirá como uma espécie de sismógrafo. Resumidamente, é possível dizer que as metamorfoses do PE permitem traçar o percurso em “U” invertido da construção europeia no seu actual modelo, que, como escrevi em livro recente (Depois da Queda, Temas e Debates/Círculo de leitores), se encontra exausto e “tombado por terra”.
De entre as principais instituições europeias, o PE só pode ser comparado – numa relação de oposição e polaridade – com o Conselho Europeu. Curiosamente, o PE é o primeiro órgão a surgir historicamente, sob a designação de Assembleia Comum, no âmbito da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (que durou entre 1952 e 2002). Por seu turno, o Conselho Europeu, embora tenha uma clara inspiração na ideia gaulista do primado dos chefes de Estado e de governo, e décadas de existência mais ou menos informal, só ganhou os contornos completos de instituição central na governação da União Europeia em 2009, com o Tratado de Lisboa (artigo 15.º do TUE). De um lado, o PE contendo a promessa de uma “Europa dos cidadãos”, a esperança acalentada já em 1941, nas prisões de Mussolini, por Altiero Spinelli, de uma democracia constitucional e federal à escala do Velho Continente, ou dos “Estados Unidos da Europa”, que Churchill propunha para a Europa continental. Do outro lado, o Conselho Europeu, a concretização da ideia velhinha do Abbé de Saint-Pierre (1713), de ter uma mesa onde se pudessem sentar todas os governantes europeus, acreditando que uma boa negociação poderia evitar uma má guerra. No fundo, o Conselho Europeu assume-se como o rosto duma Europa intergovernamental por excelência. Uma Europa onde, no limite, a lógica do estado de excepção, da balança de poder e do directório acaba por prevalecer sobre a lógica da lei e dos valores.
Entre o PE meramente consultivo de 1952, com os seus 78 deputados não eleitos, e o PE de 2019, dotado de importantes poderes de co-decisão legislativa, com 751 deputados, eleitos directamente desde 1979, houve um longo caminho. Na verdade, o PE e o Conselho Europeu são os órgãos decisivos de duas visões antagónicas da Europa e do seu futuro. O Tratado de Lisboa colocou-as numa situação de frágil empate técnico, que a internalização da crise global do capitalismo financeiro (disfarçada na UE através do pseudónimo de “crise das dívidas soberanas”) fez desequilibrar irremediavelmente em favor do Conselho Europeu. Durante os anos amargos do auge da crise, o Parlamento Europeu foi uma mera câmara de murmúrios, deixando o terreno livre para as cimeiras de salvação pela austeridade do Conselho Europeu, onde pontificava sempre Merkel e os aliados de ocasião. Na Europa de 2019, a mais intergovernamental de sempre, só os distraídos se podem admirar pelo PE se inclinar no caminho de 2014: deixar de ser uma vibrante Assembleia do entusiasmo europeu, para degenerar numa montra de ressentimento e desvario.
Viriato Soromenho-Marques
Artigo publicado no Diário de Notícias, dia 18 de Maio de 2019, p. 31.