Estamos a deixar passar na Europa quase em branco o centenário do assassinato de Rosa Luxemburgo (1871-1919). É um esquecimento que diz mais sobre nós e o nosso tempo, do que sobre a economista, activista política, filósofa, e muitas outras coisas, cujo lugar e grandeza peculiares estão bem protegidos numa vastíssima obra publicada, ainda que não suficientemente estudada. Embora tenha vivido a maior parte da sua curta vida em Berlim, Rosa nasceu na Polónia russa, originária de uma família judia abastada, cedo se revelou cosmopolita e poliglota (incluindo um domínio perfeito do alemão, russo e polaco). Foi das primeiras mulheres doutoradas pela Universidade de Zurique, entregando-se desde os 15 anos a uma militância socialista, inspirada por um sentimento de perigo e urgência que a eclosão da I Guerra Mundial mostraria ser inteiramente justificado.
Muito pode ser dito sobre o brilhantismo intelectual de Rosa, sobre a sua liberdade de espírito, que a levou tanto a criticar Bernstein e Kautsky, como Lenine e Trotsky, sobre a sua originalidade teórica, bem patente no livro A Acumulação do Capital (1913), que constitui uma verdadeira teoria da globalização, com os seus riscos catastróficos. Contudo, aquilo que gostaria de destacar encontra-se na sua correspondência privada. Saliento, pela sua intensidade moral, uma carta escrita da prisão política de Breslau, perto do Natal de 1917, dirigida à sua amiga Sonia Liebknecht, mulher de Karl Liebknecht, que seria assassinado no mesmo dia de Rosa. Atrevo-me a dizer que do mesmo modo que o conceito de “natalidade” só poderia ter sido introduzido na filosofia por uma mulher (Hannah Arendt), também esta missiva, onde a reflexão sobre si mesma e sobre o mundo se combinam numa variação subtil entre alegria de viver e compaixão, só poderia ser fruto de uma poderosa, profunda e sensível alma de mulher. Destaco duas partes da carta. Na primeira, Rosa partilha com Sonia o que designa como a sua inexplicável “feliz embriaguez” (freudiger Rausch) de existir. Descreve as suas deambulações mentais, quando pelas 22 h é obrigada a deitar-se, sem conseguir adormecer antes de madrugada. Até o som das botas do guarda lhe alimenta o júbilo de viver. A noite, escreve Rosa, mesmo na prisão, pode ser macia como o “veludo”, se olharmos na perspectiva certa. O final da carta ainda é mais tocante. Com uma escrita certeira e delicada, Rosa descreve o sofrimento de uma centena de búfalos, “troféus de guerra” trazidos da Roménia, usados como animais de tracção. Narra a crueldade de um soldado, que chicoteia um desses animais até o fazer sangrar. Comove-se até às lágrimas, em face do olhar doce e agónico desse animal, que compara a uma criança espancada sem saber porquê. No dia 15 de Janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo, indefesa, seria assassinada à coronhada e a tiro, por ordem do capitão Pabst, no Hotel Eden, na famosa avenida berlinense Kurfurstendamm. O corpo de Rosa seria depois lançado ao Spree. Pabst morreu tranquilamente em 1970, aos 89 anos de idade, sem nunca ter respondido pelos seus crimes.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de dia 17 de Agosto 2019, p. 26.