Não sei se na imensa obra dispersa, ou mesmo não publicada, de Eduardo Lourenço existirá alguma reflexão mais sistemática sobre a crise ambiental e o seu significado histórico e filosófico. Mas mesmo que tal não ocorra, parece-me que o legado de Eduardo Lourenço é metodologicamente de grande utilidade para quem pretenda fazer a “psicanálise” da estrutura mental da Modernidade, pois é aí que se encontra o software que nos levou – entre loas ao humanismo e cânticos entoados à grandeza e inventividade antropológicas – a este calvário global em que nos encontramos, assolados pelas alterações climáticas, com a sua escolta de calamidades, pela destruição da biodiversidade, que é a chave explicativa da pandemia de COVID-19, e das que se lhe seguirão, e por todas as outras ameaças existenciais, que nenhuma enumeração seria capaz de identificar com rigor e exaustividade.
No seu Labirinto da Saudade (1978), e em muitas outras obras, anteriores e posteriores, Eduardo Lourenço revelou-se como o mais brilhante crítico do “excepcionalismo português”. Com rigor, por vezes anatómico, Eduardo Lourenço analisa os mitos identitários nacionais, mostrando os parentescos existentes entre aparentes inimigos radicais, como o eram o nacionalismo conservador e católico, e o progressismo neo-realista de laivos marxistas. A mitologia lusa caracteriza-se por uma tendência para mitos irrealistas, que lhe escondem aos próprios olhos, a íntima pulsão de fuga, a recusa de um olhar no espelho, de um ajuste de contas com as suas potencialidades e limites. Era isso que levava Eduardo Lourenço a duvidar de que fôssemos capazes de “construir um telhado duradouro para a nossa própria casa”. Depois de quinhentos anos de oscilante e descontínuo nomadismo imperial, a nossa fuga colectiva foi para a Europa, sempre em busca do reconhecimento e amparo alheios, numa inquietante falta de inteligência estratégica, que marca todo o nosso bizarro e esfusiante processo de integração europeia.
Eduardo Lourenço levou o seu método de crítica das mitologias identitárias para o mundo mais vasto. O Brasil e os EUA não escaparam ao seu olhar. Contudo, foi no domínio da hermenêutica dos discursos e das efabulações europeias que o nosso grande pensador foi mais longe. A Europa Desencantada (1994), permanece um ensaio de notável clarividência, em que é o Velho Continente inteiro, na diversidade dos seus povos e imaginários nacionais sobre a Europa, que se senta no sofá para exame. Parece-me razoável, por isso, que se possa aplicar o método de Eduardo Lourenço aos mitos irrealistas que têm acompanhado, justificado e ocultado o modo incompetente e devastador como temos vindo, enquanto civilização moderna, a colocar em risco a nossa própria e única habitação cósmica. Fazendo apenas um elenco sumário do que poderíamos designar como um sistema de figuras de estilo mitológicas da modernidade, aqui se enunciam algumas: a ideologia do crescimento, assenta na colossal mentira de que é possível manter um aumento infinito de produção de mercadorias, a partir de um capital de energia e matérias-primas que é finito; a religião da tecnomania, promete o que não pode dar, pois as questões ambientais e climáticas revestem-se de uma complexidade que não pode ser resolvida por nenhuma “bala de prata”; o optimismo alucinogénio, como aquele praticado por Steven Pinker e por tantos outros industriais do mesmo ofício, que, erguendo-se como os novos Dr. Pangloss, não se cansam de nos mostrar como as estatísticas nos provam estramos a habitar “no melhor dos mundos”, apesar dos crescentes sinais de caminharmos entre ruínas; o encarniçamento gerontológico, ligado a uma bem remunerada pesquisa visando o prolongar da esperança de vida humana para números generosos de 120 ou mais anos, ignorando olimpicamente o pequeno detalhe de que isso só será possível se evitarmos a mortalidade ecológica do planeta onde tudo isso acontece…
O que devemos a Eduardo Lourenço é, sobretudo, um estilo de pensar, baseado numa integridade intelectual que funciona como um a priori absoluto, e num respeito intransigente pela verdade. Num mundo de fantasias e alucinações, tanto analógicas como digitais, Eduardo Lourenço permanecerá, para quem o queira ler e estudar, como um raro mestre nessa nobre e fundamental sabedoria da sobrevivência que é arte de pensar.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 16 de Dezembro de 2020, página 9.
“Os dirigentes trabalham com vigor e bastante êxito, no sentido de preparar a próxima guerra, e, entretanto, nós dançamos o foxtrot, ganhamos dinheiro e comemos bombons.”
Thomas Mann “O lobo das Estepes”.