Numa altura em que Portugal precisaria, mais do que nunca, de um governo funcional, parecemos mergulhados numa experiência política, em que o laboratório e as cobaias coincidem com o país inteiro. A hipótese sob teste poderia ser esta: “será possível um governo de maioria absoluta, sem a ameaça permanente da convergência das oposições, entrar em combustão interna, ou num processo autofágico?”. Outra via de aproximação ao processo de erosão que lavra no executivo, agora em lume mais intenso, prova os limites das modernas teorias políticas que se pretendem mais científicas, em favor da tradição clássica de Maquiavel, Hobbes, ou Hamilton, onde as dimensões antropológicas predominam em todo o esplendor. Na verdade, o fator humano, os dramas comunicacionais, a gestão de silêncios e omissões, a repetida incapacidade de o governo se articular num discurso e numa ação coerente e coordenada, apesar das reuniões semanais de gabinete, são indicadores de uma atomização e de um individualismo que remete mais para a dramaturgia do que para a teoria política, mais para Shakespeare do que para John Rawls.
Se a comunicação social não tivesse cumprido o seu dever de escrutínio, revelando o caso de Alexandra Reis, a situação continuaria numa paz aparente. Por outro lado, a saída de Pedro Nuno Santos apenas confirma a fragilidade do chefe do governo, que perdeu autoridade perante o resto da sua equipa ao não o demitir em julho, depois do episódio de desrespeito do ministro pelo primeiro-ministro no seu imprudente e improvisado tratamento da questão do novo aeroporto de Lisboa. O que está em causa não é, como diz o ex-ministro das Infraestruturas em comunicado, assumir responsabilidade “face à perceção pública e ao sentimento coletivo gerados”. Mais do que a espuma percetiva, o que um governo tem de cuidar é da substância do interesse público. O que o caso de Alexandra Reis revela é a inaceitável coabitação do governo com uma gestão, também salarial, incompatível com a natureza pública da TAP e com o desastre financeiro que ela tem representado para o erário público. O mesmo se poderá dizer de outras áreas da governação.
A maioria absoluta que António Costa, inesperadamente para o próprio, recebeu do eleitorado, reconheceu nele o político em melhores condições para liderar um governo em tempos muito difíceis. O mergulhar da Europa numa escalada de guerra, envolvendo as maiores potências nucleares, veio adicionar um problema existencial ainda mais grave, face ao potencial maior arrastamento do país para um conflito de desfecho e proporções incertas. Os sentimentos que mobilizaram os eleitores na oferta de uma maioria absoluta ao PS combinavam uma dose de esperança com outra dose, ainda maior, de angústia face a um futuro caracterizado pelo impacto negativo de múltiplas crises em marcha. Isso obrigaria o PM a um exercício rigoroso e constante de monitorização das atividades dos seus ministros. O caso da frustrante escolha de Miguel Alves como braço direito não abonou a favor do talento do PM para mudar o método e o rumo. A margem de erro para o governo tornou-se mínima. Será bom para o país que Marcelo não venha a ser forçado a juntar-se a Sampaio na mais pesada e incerta, como se viu em 2004, das decisões presidenciais. No limite, será sempre na ponderação do PR que o espírito e a letra da Constituição prevalecerão sobre qualquer conjuntural maioria absoluta.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 31 de dezembro de 2022, página 9.