A previsão da Comissão Europeia de que a Roménia ultrapassará Portugal no produto interno bruto (PIB) per capita em 2024 foi uma oportunidade perdida para um debate sério sobre economia. Tanto o governo como a oposição passaram ao lado da questão central de refletir sobre os limites do PIB como indicador macroeconómico.
O PIB nasceu nos EUA, no período da Grande Depressão, caracterizado, durante anos a fio por níveis de pobreza e sofrimento social extraordinários. O próprio criador deste instrumento, o economista Simon Kuznets (1901-1985), trabalhava na equipa que desenhou as respostas económicas do presidente F.D. Roosevelt. Foi nesse âmbito, no seu relatório ao Congresso dos EUA sobre National Income 1929 -1934, que Kuznets apresentou esse novo indicador de macroeconomia capaz de expressar em termos monetários a soma de todos os bens e serviços finais produzidos numa região ou país por todos os atores económicos, num determinado período. O próprio Kuznets seria o primeiro a negar ao PIB o prestígio ilegítimo de que ele hoje goza. O pai do PIB explicaria que este indicador agregado teria de ser complementado e corrigido por análises mais finas de tipo qualitativo, onde as escolhas e os propósitos das políticas públicas teriam a palavra decisiva: “Objetivos para mais crescimento devem especificar qual a natureza e o objetivo desse crescimento.” No fundo, o que está aqui em causa é a distância que separa o crescimento (expresso grosseiramente no PIB) de uma ideia-objetivo de desenvolvimento, que implica uma grelha muito mais vasta de indicadores, e um debate político – aberto, esclarecido e participado – sobre o melhor modelo de economia que o possa concretizar. Dito de outra forma, a persistente idolatria do PIB transforma o crescimento económico, que deveria ser um instrumento ao serviço da qualidade de vida dos indivíduos e da comunidade, num fim em si próprio, que subordina e secundariza os interesses dos indivíduos e da comunidade. Exemplificando por absurdo: uma sociedade que manifestasse níveis ótimos de saúde pública, de paz social e de gestão racional e equilibrada do ambiente, poderia ver baixar o seu PIB pelo desaparecimento das verbas correspondentes gastas para combater a doença, a criminalidade ou, por exemplo, os incêndios rurais sazonais.
Mas a razão maior pela qual o PIB se transformou num perigoso ídolo, consiste no véu de cegueira que ele lança sobre o impacto desastroso que uma economia mundial voltada para o crescimento ilimitado – como a nossa o é hoje – acarreta para a possibilidade de a Terra continuar a ser uma morada hospitaleira para o futuro da história humana. O paradoxo entre discurso e ação nunca foi tão doloroso como é nestes dias. Governos e empresas globais mergulham sem rebuço no banho ameno da retórica “verde”, mas as estatísticas mostram que, uns e outras, continuam implacavelmente a sacrificar a terra arável, os habitats da biodiversidade, a qualidade do ar e da água, a poluir os mais remotos e profundos cantos do planeta. O culto incondicional do PIB representa o absurdo de uma economia que se pensa fora das leis da física e acima dos limites da Terra. A vida tem confirmado o pai da “economia ecológica”, Kenneth E. Boulding (1910-1993), quando este afirmou em 1973, no Congresso dos EUA, que defender a viabilidade do crescimento exponencial num planeta finito só pode ser ou sinal de loucura, ou o dislate de economistas que confundem ciência com pensamento mágico.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado na edição de 10 de dezembro de 2022 do Diário de Notícias, p. 9.