O assassinato, impossível de adjectivar, do jornalista saudita Jamal Kashoggi, é uma trágica janela de oportunidade para romper os véus da ilusão diplomática, mergulhando brutalmente no autêntico software da política mundial. Depois de semanas a tentar esconder o óbvio, todos os sinais iniludíveis de culpa recaem sobre o príncipe saudita Salman. Este jovem tem ganho uma reputação de reformista no Ocidente, apesar da repressão duríssima dos seus opositores, e de conduzir uma política externa de imperialismo bélico no Yemen e na Síria. A que se junta o bloqueio do Qatar e o rapto temporário do primeiro-ministro libanês Hariri. Como é possível ter uma reputação tão oposta ao que os actos contam? Segundo a revista Foreign Policy, o Príncipe contratou, no valor de milhares de milhões de dólares, as maiores empresas de Relações Públicas de Washington (Hannah Arendt designava-as, antes, como empresas de “mentira organizada”). Contudo, mesmo a mentira sofisticada tem limites, e o aprendiz de tirano dos desertos tem ainda muito que aprender. Foi esse, aliás, o teor das recentes declarações de Trump: não denunciou a brutalidade do crime e a imoralidade do mesmo, mas do alto dos seus 72 anos de experiência, lamentou a tripla incompetência do seu amigo de 33: a ideia desproporcionada do assassínio, o “mau” desempenho na execução do mesmo, e o seu desastroso encobrimento.
Para perceber o que está em causa, ajudará recordar as declarações do académico britânico, Ziauddin Sardar, na sua passagem por Portugal em 2015. Sem evasivas, Sardar afirmou que o “Estado Islâmico” se confunde com a história da Arábia Saudita e do sunismo extremista (wahhabismo) que aí se pratica como política oficial. A pergunta que cada um de nós, cidadãos de democracias ocidentais, gostaria de ver respondida prende-se com o facto de todos os grandes países continuarem a fazer negócios e considerarem Riade como um aliado. Os EUA são o caso mais escandaloso. Existem hoje fortes indícios de que os ataques do 11 de Setembro tiveram o apoio do governo saudita (15 dos 19 membros do comando terrorista eram sauditas). Não só se perderam 3 000 vidas, como tudo foi feito pela Administração Bush para ocultar a verdade, fazendo do Iraque um potencialmente lucrativo bode expiatório. Mas os EUA convivem e suavizam a brutalidade saudita independentemente do presidente de serviço, como as 4 viagens de Obama a Riade o provam. Trump tem a seu favor o desassombro. Ele tem sido claro em afirmar que os 110 mil milhões em vendas de armas à Casa de Saud são irreversíveis. Pior é a posição francesa. Macron, que também já visitou o país, nem sequer respondeu à pergunta da imprensa sobre o que fazer aos 11 mil milhões em armas encomendadas a Paris. Também aqui – depois de se saber a implicação das madraças pagas pelos sauditas nas centenas de vítimas do terrorismo islâmico em França – os governos continuam a agir como representantes dos negócios, mesmo quando os seus cidadãos indefesos são assassinados por terroristas subsidiados pelo governo de Riade. O meu prognóstico é o de que, dentro de escassos meses e depois de muitos milhares de milhões de dólares sauditas serem entregues nas mãos certas, a normalidade da hipocrisia política e da insegurança pública retomarão o seu caminho. Como afirmou, sabiamente, Winston Churchill: “Os homens ocasionalmente tropeçam na verdade, mas a maioria deles levanta-se, e correm apressados como se nada tivesse acontecido.”
Viriato Soromenho-Marques
Publicado originalmente no Diário de Notícias de 28 de Outubro de 2018