Se no futuro alguém escrever a história de 2023, é provável que os atuais acontecimentos portugueses nem mereçam uma nota miudinha de rodapé. Pelo contrário, merece toda a atenção o apuro em que se encontram os EUA, o aliado central de Portugal, e maior superpotência militar mundial. Como sempre acontece com todas as grandes potências em declínio, ocorrem dois fenómenos simultâneos: a) existe uma crença e aposta na força militar, como se este instrumento fosse também um fim em si próprio; b) a incompreensão da supremacia da política sobre a coação das armas, acaba por desperdiçar os próprios sucessos militares, levando ao fracasso dos objetivos estratégicos visados. Um exemplo contemporâneo da ilusão sobre as virtualidades do poderio militar, concebido como separado de uma política prudente e realista, foi a conduta alemã na II Guerra Mundial. Quanto mais sucessos as forças armadas germânicas obtinham (consideradas as tecnicamente mais competentes da II GM), mais Hitler delas exigia. Em vez de ter consolidado a vitória de 1940 na Europa ocidental, Berlim invadiu a URSS em junho de 1941, e como se isso não bastasse, declarou guerra aos EUA em dezembro desse ano, num gesto de estupidez sem paralelo histórico. Em 1955, o marechal Erich von Manstein definiu esse comportamento no título das suas memórias: Vitórias Perdidas (Verlorene Siege).
A resposta exclusivamente militar à invasão russa da Ucrânia padece do mesmo erro de conceção. Em vez de ter apoiado um cessar-fogo e as negociações de paz que se travaram nas primeiras semanas do conflito, para encontrar uma solução política menos onerosa em sangue e território, os EUA e seus aliados resolveram armar crescentemente Kiev, desprezando uma análise político-militar sensata que concluiria ser uma vitória ucraniana apenas possível com intervenção direta da OTAN, o que implicaria uma inaceitável e catastrófica escalada da guerra. Como se não bastasse o desaire na Europa, os EUA estão a cometer um erro de palmatória no Médio Oriente ao darem uma hipócrita assistência ao crime contra a humanidade que, metódica e sistematicamente, o governo de Netanyahu está a cometer em Gaza. Esse erro consiste em diluir-se na estratégia de um aliado mais fraco. A credibilidade dos EUA em matéria de direitos humanos, que já era débil, cai por terra perante o olhar não só dos adversários, mas também dos aliados. Biden deu a estocada final no edifício que os EUA começaram a construir no Médio Oriente, quando em 1956 se opuseram à aventura neocolonial de Paris e Londres, apoiada por Telavive, atacando o Egito de Nasser, depois deste ter nacionalizado o Canal do Suez. Eisenhower não hesitou em exigir a retirada das tropas franco-britânicas do Egito, pois o revivalismo colonial dos seus aliados europeus punha em causa o objetivo de Washington: construir boas relações não apenas com Israel, mas também com os Estados árabes. Ao contrário de Biden, que dá cobertura a um regime que já matou mais de uma centena de funcionários da ONU, Eisenhower, com apoio da URSS, contornou o veto de Londres e Paris no Conselho de Segurança, conseguindo que uma reunião especial da Assembleia Geral da ONU aprovasse a primeira Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF) para garantir a paz na região. Hoje, os EUA assemelham-se a um gigante armado, enleado nos enigmas de um sistema internacional cuja complexidade lhe escapa. Em risco de tropeçar na própria espada, arrastando na sua queda o resto do mundo.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 18 de novembro de 2023, página11.