TIAGO PITTA E CUNHA, PRÉMIO PESSOA 2021 – O FUTURO COMUM NAVEGA NOS OCEANOS

Há muito tempo que conheço a intervenção pública de Tiago Pitta e Cunha nos assuntos do mar. Foi, por isso, uma dupla alegria, também na condição de membro do júri do Prémio Pessoa, ver-lhe atribuída esta importante distinção, relativa ao ano que agora termina. As razões que motivaram esta atribuição por parte do júri, sempre lidas pelo seu Presidente, Francisco Pinto Balsemão, são conhecidas. Gostaria de as sublinhar e, acrescentar algumas de índole pessoal, pois é na minha condição de cronista do JL que aqui me apresento, como sempre, aos leitores.

O percurso. Aquilo que fazemos com a nossa vida depende sempre dos encontros que nos marcam. No caso de Tiago Pitta e Cunha, a descoberta da causa que se transformou na vocação da sua vida, ocorreu durante a preparação da sua tese de mestrado na London School of Economics and Political Science (1994). Tomou consciência da importância do mar e dos oceanos, sob todas as perspectivas e ângulos, assim como do reconhecimento por membros destacados da comunidade académica internacional do papel inaugural de Portugal nesses assuntos, como primeiro império marítimo global da história. A face negativa dessa revelação foi a constatação da hodierna relação traumática de Portugal com os oceanos. Uma perigosa mistura entre recalcamento e mutilação de possibilidades essenciais para o futuro. Não se tratou nunca, contudo, de uma visão centrada numa óptica estritamente nacional, porque para ele o mar e os oceanos nunca se separaram de uma visão abrangente e interdisciplinar, ameaçada pela lógica beligerante de duas dinâmicas de globalização em rota de colisão: uma extractivista e predatória, que transforma o mar em mais um armazém de recursos naturais a explorar sem limites; outra, que encara o mar como parte do grande e ameaçado Sistema-Terra, um ecossistema vulnerável, mas decisivo para que a humanidade possa sobreviver e ultrapassar a crise global do ambiente de que é ela própria a única responsável.

A primeira parte do seu percurso profissional aproximou-o do mar, no âmbito do trabalho em organizações internacionais, como as Nações Unidas, tendo sido assessor do Presidente da sua AG em 1995-1996. Ali foi também conselheiro na Missão Permanente de Portugal (1999-2002). Representou para os assuntos do mar, também em Nova Iorque, a União Europeia durante as presidências portuguesa e francesa da União em 2000, entre outras funções junto da ONU. Já em Portugal, coordenaria a Comissão Estratégica dos Oceanos, um grupo de trabalho de alto-nível, nomeado pelo Primeiro-Ministro, que produziu um documento estratégico para a política nacional nesse domínio (Junho de 2003 a 2004). Regressaria à esfera global, desta vez como membro do Gabinete do Comissário Europeu para os Assuntos Marítimos e coordenador da nova Política Marítima Integrada da União Europeia (Novembro de 2004 a Fevereiro de 2010).

Nos anos difíceis da crise do euro e da intervenção da troika em Portugal, Tiago Pitta e Cunha não desiste da sua luta. Mantém e alarga redes de alianças, nacionais e internacionais, para tentar construir uma coligação de vontades capazes de conferir à causa dos oceanos uma plataforma permanente de reflexão e acção. Sobretudo, importava criar uma entidade capaz de resistir às vacilações das nossas débeis políticas públicas, sendo também imune a grupos de pressão, públicos ou privados, movidos por lógicas redutoras e de curto prazo. O resultado desse esforço colectivo, foi a criação da Fundação Oceano Azul, em 2017, uma instituição exemplar de cooperação entre o sector público e a filantropia privada da Fundação Francisco Manuel dos Santos (ver a nossa crónica no JL de 20 03 2017). Tiago Pitta e Cunha é hoje Administrador Executivo do Conselho de Administração da Fundação Oceano Azul (FOA), presidida por José Soares dos Santos, tendo a seu lado o biólogo João Falcato e o professor e cientista Emanuel Gonçalves.

A acção. Se quisermos definir o que tem sido o trabalho inspirado por Tiago Pitta e Cunha e pelo colectivo da FOA, julgo que o poderemos descrever como a concretização de uma visão integrada sobre o lugar vital do mar na situação crítica do mundo contemporâneo. A ciência e a cultura, em sentido amplo, têm sido fundamentais. Alertando para os grandes perigos que desequilibram a estabilidade ecológica dos oceanos. Promovendo acções estruturadas, com a colaboração de escolas e professores, para aprofundar a literacia dos oceanos. Apoiando a mobilização dos cidadãos no combate à poluição do litoral. Estimulando a capacitação de organizações não-governamentais dedicadas à protecção dos ecossistemas marinhos. Alertando para a urgência de uma economia do mar, aliada da conservação e não sua inimiga. No plano internacional, por outro lado, a FOA tem sido importante no processo diplomático europeu e internacional para melhorar o direito e a cooperação política global na esfera dos assuntos marítimos.

Em 2021, o trabalho acumulado em anos anteriores começou a dar fruto visível. Apenas três exemplos marcantes. Primeiro: a proposta, cientificamente fundamentada, de criação de uma Área Marinha Protegida de Interesse Comunitário, fruto de 3 anos de um processo participativo, que ganhou a adesão de mais de 70 entidades, para propor ao Estado a criação do Parque Natural Marinho do Recife do Algarve – Pedra do Valado.Destaca-se aqui o papel desempenhado pela Universidade do Algarve e pelos municípios de Silves, Lagoa e Albufeira (ver a nossa crónica no JL de 16 06 2021). Segundo: o alargamento da Área Marinha Protegida das Selvagens, anunciado em 29 de Novembro pelo Presidente do Governo Regional da Madeira. Dos 94 Km2 iniciais, esta AMP de protecção integral passará para 2 677 Km2, tornando-se a maior unidade do género no Atlântico Norte. Terceiro: o anúncio do Governo Regional dos Açores, em 3 de Dezembro, do objectivo de criar, até 2023, uma vastíssima AMP de 300 000 Km2, correspondendo a 30% da área sob sua jurisdição, metade da qual (150 000 Km2) será de protecção total.

As consequências, desta colaboração entre a comunidade científica, a sociedade civil, as empresas, os governos, nacional e das regiões autónomas, entre outros actores, são ainda difíceis de avaliar. Contudo, existe uma que me parece ser indispensável destacar. Estamos a assistir a uma mudança no conceito de “património comum da humanidade” (common heritage). Trata-se de uma importante categoria do direito internacional público, formulada, curiosamente, por um diplomata maltês, Arvid Parvo (1914-1999), um dos pais da Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar (1982). Esse conceito destinava-se a considerar a existência de uma tutela comum sobre os espaços exteriores à esfera territorial da soberania nacional (como é o caso do alto-mar, para lá da ZEE dos países, ou, por analogia, da Antárctida). Contudo, a realidade complexa da crise global do ambiente e do clima revela que os bens comuns da humanidade não respeitam as fronteiras nacionais, são porosos e transversais. Ao criar vastas e ambiciosas áreas marinhas protegidas, dentro do território sob sua jurisdição, Portugal está a dar um exemplo de soberania responsável, considerando como interesse nacional a defesa dos superiores bens comuns da humanidade inteira. Para a intenção portuguesa de duplicar a área da sua plataforma continental, este gesto, se continuar a ser seguido com coerência e firmeza, constituirá o melhor de todos os argumentos: o dos actos que são reflexo fidedigno das boas intenções.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 29 de Janeiro de 2021, páginas 27 e 28.

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