SONÂMBULOS AO LEME DO TITANIC

Em nenhuma época histórica vivemos tão perto de potenciais ruturas abissais. Ruturas que podemos antecipar pelo conhecimento e cujo trajeto provável pode ser calculado. Em ambos os casos, o seu desfecho seria uma tragédia sem paralelo nos anais de sofrimento da história humana. Perante esses dois perigos existenciais, os líderes da humanidade – sejam eles políticos, religiosos, económicos ou culturais – deveriam fazer uma frente comum, realizando aquilo que desde há um quarto de século venho designando como “cooperação obrigatória (ou compulsória)”. Que ruturas são essas? A primeira, e mais antiga na agenda internacional, é a do risco de uma guerra nuclear de autodestruição. A segunda rutura, já antecipada há dois séculos pela flor da inteligência humana, mas assumida na agenda internacional apenas há 50 anos (com a Conferência da ONU de 1972 sobre Ambiente Humano), é a do colapso ambiental e climático. Se quisermos uma metafórica médica para o que está em causa na nossa habitação da Terra: a guerra nuclear constituiria uma morte brusca, como um enfarte ou um acidente vascular-cerebral. O colapso ambiental pode ser comparado com a degradação irreversível da vida causada por uma neoplasia incurável.

Depois de 1989, com o terminar da guerra-fria, processo desencadeado, com mérito e custos elevados, por M. Gorbachov, o espetro do inferno nuclear, do day after com as suas cidades arrasadas e centenas de milhões de mortos e agonizantes pareceu desvanecer-se. A armadura de tratados de limitação de todos os tipos de armas, que preveniu o conflito nuclear durante a rivalidade aguda entre EUA e URSS, foi sendo abandonada pelos EUA, que se declarou como vencedor da guerra-fria. Trinta anos depois, com a guerra na Ucrânia, e agora nos massacres de Gaza, as tensões não só regressaram, como ganharam uma intensidade nunca vista antes. Não é apenas a força destrutiva das armas que é uma ameaça, mas sobretudo a febre cognitiva e a nulidade moral que parece envolver os homens e mulheres a quem cabe decidir. Há uma leviandade disfarçada de destemor, que não encontramos nunca entre 1949 e 1989. O mesmo se aplica ao segundo perigo abissal. O desaire, previsto e programado, da COP28, revela bem como os (ir)responsáveis políticos e económicos têm as intenções do coração escondidas atrás de um muro de palavras tão adocicadas como vazias. A corrida aos armamentos rima com a competição entre os grandes produtores de combustíveis fósseis, liderados pelos EUA, Rússia e Arábia Saudita. Os governos falam de descarbonização, de proteção dos ecossistemas, mas autorizam novas explorações de petróleo, gás natural e carvão.

Aldo Leopold (1887-1948), um notável engenheiro florestal norte-americano, esboçou uma novel ética, designada como “ética da terra” (land ethic), fundada no respeito e reconciliação da humanidade com o planeta e as suas criaturas. Para ele a nossa sobrevivência dependeria da capacidade de transformar essa revolução ética de uma mera “possibilidade evolutiva” numa “necessidade ecológica” plenamente realizada. Numa altura em que o extermínio de populações civis é consentido, revelando a inconsistência dos valores na nossa retórica ocidental, travar a destruição ecológica do planeta parece algo cada vez mais distante. Continuamos ainda muito longe desse despertar coletivo, proposto por Leopold. Só ele nos poderia resgatar dos abismos para onde o reinante sonambulismo da avidez e vontade de poder nos conduz.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias na edição de 16 de dezembro de 2023, página 11.

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