SOMOS O QUE FAZEMOS AO MUNDO

Salvar o Futuro e com ele a Dignidade Humana

Oito anos depois da sua encíclica sobre a situação ambiental e climática do nosso mundo, Louvado Sejas (Laudato Si), o Papa Francisco, aproveitando, também as vésperas da conferência climática que se irá realizar no Dubai (de 30 de novembro a 12 de dezembro de 2023), publicou a sua Exortação Apostólica, Louvai a Deus (Laudate Deum). Uma vez mais, o Papa Francisco revela-se como o único líder mundial – religioso, espiritual e político – com coragem inabalável para não voltar as costas aos titânicos desafios do futuro que comprometem a humanidade inteira.

I

Nesta primeira parte da minha reflexão, gostaria de identificar as três características essenciais que unem método e conteúdo neste documento de Francisco,

Em primeiro lugar, o Papa assume uma ampla perspetiva universal. Dito de outro modo, a sua origem não europeia permitiu-lhe uma experiência de vida, rica e diversa, onde naturalmente não se paga tributo ao pecado venial do eurocentrismo, que tende a identificar-se, de modo arrogante e redutor, com a universalidade inteira. Pluralismo e multilateralismo não são obstáculos, mas sim condições de possibilidade de uma consentida unidade humana, ecuménica e cosmopolita, no enfrentar dos problemas comuns da humanidade contemporânea.

Em segundo lugar, no pensamento do Papa Francisco vislumbramos um modelo de linguagem que se articula como uma espécie de esperanto, ecuménico e laico. Francisco integra num todo fluido e coerente conhecimentos provenientes das ciências da natureza, das ciências sociais e humanas, da teologia e da filosofia. Os leitores, mesmo com uma formação académica reduzida, desde que dotados de uma genuína curiosidade intelectual, têm na escrita de Francisco uma porta aberta para novos mundos de conhecimento, mas também de compromisso e responsabilidade com o futuro.

Por último, nenhum leitor sairá desta Exortação com um sentimento de tranquilidade. A razão é simples. Este é um dos textos mais intelectualmente honestos escritos por um líder na história recente. A Exortação termina de forma abrupta e incisiva. Estou convencido de que Francisco quis que aos leitores não fosse escondida a verdade sombria de um mundo em perigo. A Exortação fala-nos de uma luta gigantesca pela sobrevivência do mundo e de valores que nos conferem dignidade como seres humanos. O que está em causa é a redenção da própria ideia de uma centelha divina habitando no coração da humanidade. A luta decisiva ainda está em curso, e é de nós próprios que nascerá a esperança que procuramos. Se falharmos, será a herança e a memória de toda a humanidade histórica quer soçobrará.

II

Comentários sobre Tópicos Relevantes Presentes na Exortação

(a numeração refere-se aos parágrafos do texto)

Pecado Estrutural”. O Papa Francisco (doravante PF) recorre a um conceito de enorme relevância teológica, mas também ética e político-jurídica, retirado do debate das Conferências episcopais africanas (§3). O “pecado estrutural” revela a enormidade do crime ambiental, como destruição ontológica. Uma forma enraizada de Mal que desafia o Deus Criador no coração da sua Criação, introduzindo o Nada no lugar do Ser.

Crítica às elites ricas que culpam a demografia dos pobres pelas feridas ambientais do mundo. Nas conferências em que se reúnem centenas de ricos e super-ricos, que cobrem a atmosfera com as toneladas de carbono das suas fúteis viagens em jatos privados, é doloroso verificar que são atribuídas responsabilidades principais à fertilidade reprodutiva dos pobres do mundo (§9).

O tempo de prevenir a desordem ambiental planetária foi ultrapassado, mas temos o dever de evitar danos piores. O que está a acontecer ao Planeta, devastado pela crise ambiental e climática, já não permite regressar ao equilíbrio passado. O que podemos e devemos fazer é impedir que a distopia da presente civilização que prometia o “paraíso na Terra”, a acabe por transformar num autêntico e inabitável Inferno (§16).

Responsabilidade pela herança que deixamos. O PF salienta o tremendo vazio ético da nossa contemporaneidade perante o futuro e as gerações mais jovens. A “economia que mata” faz um desconto hiperbólico do futuro, onde o mundo dos nossos filhos é anulado e colocado fora de preocupação (§18).

Crítica ao “paradigma tecnológico, que vive na ilusão de que a tecnologia é uma espécie de criação ex-nihilo(§20). Este tema, de grande riqueza filosófica e teológica, é o embrião de uma autêntica interpretação da história contemporânea. Ele associa-se ao que podemos designar como um humanismo hiperbólico, ou, nas palavras do PF, um “ser humano sem limites”, que se traduz, entre outras manifestações na Inteligência Artificial, exemplo gritante do modo como a humanidade parece ter perdido qualquer espécie de controlo sobre as suas criações tecnológicas (§21), até pelo facto de ser uma pequeníssima minoria a controlar o destino tecnológico da humanidade inteira (§23). Este curso reflexivo do PF, constitui uma atualização da temática oitocentista da “morte de Deus”, prosseguida na crítica à, ainda hoje dominante, idolatria de uma interpretação distópica do humanismo: “…Um ser Humano que pretende tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo” (§73).

Ao degradar a natureza, o ser humano degrada-se a si mesmo. A natureza não é “moldura”. Nós vivemos nela, somos natureza (§ 25). O PF denuncia o marketing e o greenwashing enganador das grandes empresas e países ricos que prometem desenvolvimento e transporta a poluição e o deserto consigo para as zonas periféricas do mundo (§29). Critica também a ilusão da “meritocracia”, usada para justificar a desigualdade(§32).

A Fragilidade do sistema internacional. OPF não tem dúvidas de que o sistema internacional é multilateral, precisando, contudo, de ser reformado para evitarmos o caos e a violência. Isso é uma tarefas dos povos e Estados (§37), mas também da sociedade civil, artífice ativa na construção democrática interna e global, como o demonstra o papel que esta assumiu na luta contra o flagelo das minas antipessoal (§38).

As imensas dificuldades da diplomacia ambiental e climática. Com muita lucidez, o PF estabelece um diagnóstico rigoroso dos defeitos estruturais do Acordo de Paris e do processo negocial das COP (Conferência das Partes da Convenção do Clima de 1992) (§47). Na véspera da COP 28, no Dubai, alerta contra os riscos de soluções técnicas isoladas, que simplificam os problemas, agravando-os, mas dando a ilusão de que houve algo de positivo no resultado dos trabalhos (§57).

Compreensão pelos protestos dos jovens ativistas climáticos. Escreve o PF: “Por ocasião das Conferências sobre o Clima, chamam frequentemente a atenção as ações de grupos ditos «radicalizados»; mas na realidade eles preenchem um vazio da sociedade inteira que deveria exercer uma sã pressão, pois cabe a cada família pensar que está em jogo o futuro dos seus filhos” (§58). O alegado “radicalismo” dos jovens é um gesto de legítima preocupação que procura colmatar o vazio deixado pela inatividade, em particular, das instituições e líderes que deixam avolumar a catástrofe ecológica sem tomarem as medidas estratégicas necessárias para a enfrentar.

Humildade de Reconciliação. A Terra pertence ao Criador. Os humanos são hóspedes que se transformaram em perigosos usurpadores (§62). A humanidade tem de se olhar no espelho dos seus atos, alterando o rumo tanatológico em que nos encontramos embarcados. Nas palavras do PF, esse é o caminho de um “Antropocentrismo situado” (§67) que nos leva a uma responsabilização pelo mundo com todas as suas criaturas, num horizonte de “Reconciliação com o Mundo” (§69).

Nota: A primeira versão deste texto foi divulgada na publicação digital Sete Margens (https://setemargens.com) em 7 de outubro de 2023.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 18 de outubro de 2023, páginas 31-32

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