Graças ao anticiclone dos Açores, Portugal tem-se mantido, até agora, protegido das ondas de calor que devastam o hemisfério Norte, do Canadá à Grécia. O Programa Copérnico, criado por um regulamento europeu em 2014, tem fornecido informação significativa, através da sua rede de satélites, para perceber o “como” deste fenómeno (C35 Report, The European Heatwave July 2023 in a Longer-Term Context, 20th July 2023. https://climate.copernicus.eu/european-heatwave-july-2023-longer-term-context).
Contudo, o “porquê” destas anomalias meteorológicas, sintomáticas de um aumento de velocidade no avolumar da crise global do ambiente e clima, é sobejamente conhecido: as alterações climáticas estão a agravar-se devido à total paralisia do sistema político e económico que nos governa. As negociações climáticas são hoje parte de uma cultura promotora de distração e de alheamento. A guerra na Europa revela bem as prioridades dos países que deveriam liderar a apregoada luta pela redução das emissões (sempre crescentes) dos gases de efeito de estufa: encontrar desesperadamente alternativas aos combustíveis fósseis russos, que, por sua vez, satisfazem novos mercados. Por todo o lado, reabrem-se ou inauguram-se novas minas de carvão. Exploram-se novas jazidas de petróleo e gás natural, rasga-se a terra para nela triturar gás de xisto.
A bióloga australiana Lesley Ann Hughes, da Universidade Macquarie, caracterizou bem a situação: “Tudo de passa como se a espécie humana tivesse recebido um diagnóstico médico de uma doença terminal curável, mas tivesse decidido conscientemente não se salvar” (declarações ao Guardian, 24 07 2023). Os australianos olham para os 900 incêndios florestais que assolavam o Canadá em 18 de julho e sabem que quando chegar o Verão austral será a sua vez. O físico e climatologista, também australiano, Bill Hare, afinava o diagnóstico de Lesley Hughes relativamente a quem decidia “conscientemente” seguir no caminho da autodestruição. De facto, “a espécie humana” parece ser um sujeito coletivo demasiado amplo, apto a esconder os principais culpados: eles são em número reduzido, concentrando-se nas centenas de líderes políticos e empresariais que constituem a elite que está disposta a acabar com a história humana – através de uma catástrofe que será maior do que centenas de holocaustos somados – para se manter no poder e gozar mais algumas décadas de privilégios que nada são perante tudo aquilo que será perdido.
No dia 13 de julho, James Hansen, o mais importante climatologista vivo, publicou com mais dois colegas um breve resumo científico sobre a aceleração extraordinária da degradação do equilíbrio climático global (James Hansen, Makiko Sato & Reto Ruedy, The Climate Dice are Loaded. Now, a New Frontier?). Como os leitores podem verificar na figura, retirada desse texto, relativa ao hemisfério norte, entre 1951 e 2020 podemos identificar três períodos bem distintos: a) entre 1951 e 1980, existia uma quase igualdade na distribuição entre verões com temperatura média (a branco), verões com temperatura elevada (vermelho) e estios com temperatura mais fresca (azul); de 1990 a 2000, os verões mais quentes passaram a ser quase o dobro dos mais amenos (Hansen usa a metáfora de um dado: 4 das 6 faces eram quentes); c) finalmente, na década de 2010 a 2020, 5 das 6 faces do dado já se encontram na zona de risco.
FIGURA 1: Distribuição das anomalias de temperatura em terra no Hemisfério Norte de junho a agosto
O SG da ONU, António Guterres, voltou a elevar a sua voz ao céu, implorando a um “Deus desconhecido”. Estamos a passar do “aquecimento global para a ebulição global”. Isso é confirmado por todos os estudos. Em meados deste século teremos uma temperatura média à superfície mais próxima da do Plioceno (época geológica de há 2-3 milhões de anos), quando o nível médio do mar estava 20 metros acima do atual, do que a que tivemos até meados do século XX. O contraste entre séculos de antropocentrismo e humanismo arrogantes, e o ecocídio e futurocídio em que estamos, com toda a energia, embarcados, é um assunto demasiado sério para ser deixado em silêncio. Numa altura em que estamos a libertar forças e processos naturais completamente fora de controlo, absolutamente fora da capacidade de correção de qualquer tecnologia e engenharia humanas, temos a obrigação de nos olharmos no espelho dos nossos atos, ousando responder à mais terrível das perguntas: de quem são aqueles olhos que nos interpelam do outro lado do espelho?
TABELA 1: DADOS SOBRE PORTUGAL CONTINENTAL
- Regiões portuguesas mais afetadas por ondas de calor desde 2003: São as regiões do interior Norte e Centro – distritos de Bragança, Vila Real, Viseu e Guarda – e o Alentejo – distritos de Setúbal, Évora e Beja – as mais afetadas.
- Os Verões com maior percentagem de estações meteorológicas em onda de calor no Verão desde 2000 foram: 2013 (89%), 2006 (85%), 2003 (76%), 2018 e 2022 (74%).
- O maior número total de dias em onda de calor, 918 dias, ocorreu no Verão de 2022, com a contribuição significativa da região Nordeste. Nesta região, em algumas estações verificaram-se quatro ondas de calor, a que corresponderam um total de dias superior a 40 em onda de calor. De referir Bragança, Mirandela e Carrazeda com 44, 42 e 41 dias, respetivamente. Destacam-se ainda os anos de 2003 e 2006 com mais dias em onda de calor (687 e 667 dias, respetivamente).
TABELA 2: TENDÊNCIAS GLOBAIS
- Segundo dados da Organização Meteorológica Mundial (OMM), o número de ondas de calor em simultâneo no hemisfério norte é já seis vezes mais do que o que se verificava em 1980.
- O IPCC estima ainda que até 2050, cerca de metade da população europeia poderá enfrentar um risco alto ou muito alto de stress por calor no Verão.
Fonte das duas Tabelas: Vanda Cabrinha (IPMA) “Ondas de Calor em Portugal Continental. Passado, Presente e Futuro”, 27 07 2023. https://www.nationalgeographic.pt/meio-ambiente/ondas-calor-sua-evolucao-portugal-continental_4036
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 9 de agosto de 2023, página 33.