SOLIDÃO NA ENCRUZILHADA

Aprendemos com Hannah Arendt que a mentira conveniente tem perna curta, e jamais pode substituir-se à verdade factual. Contudo, consegue danificar gravemente a bússola que nos orienta colectivamente no mar alteroso da existência em comum. Chegámos hoje a um ponto crucial de consciência pública sobre as grandes ameaças globais, mas a inércia continua a empurrar-nos para diante, fazendo os nossos actos seguir na direcção oposta das nossas palavras. Estamos muitos preocupados com a degradação do ambiente e clima, mas temos dificuldade em articular um pensamento crítico. Apesar do slogan da descarbonização, mantemos as rotinas económicas e os estilos de vida, criando até taxonomias mágicas, como o fez agora a Comissão Europeia ao lançar água benta “verde” para cima dos isótopos radioactivos e do gás natural. Não obstante o anunciado e maravilhoso novo mundo digital, onde mergulhámos a pés juntos e de olhos fechados, percebemos que os profetas que nos conduzem não levaram mapas para a estrada. Pobre da empresa, do Estado, ou do cidadão que não tenha a reserva redundante dos seus dados, em registo analógico…Fica na mira de tiro de qualquer anónimo terrorista digital.

Esta é uma sociedade de risco (ambiental e tecnológico) por excelência Um risco tornado inevitável pela prevalência de um sistema de responsabilidade difusa, o mesmo é dizer, um sistema de inimputabilidade e de irresponsabilidade organizadas. Chegámos a uma encruzilhada em que é preciso escolher entre mudar de rumo, ou continuar na senda de um crescimento que deixou atrás de nós um mar de ruínas, e ainda promete pior para diante. O mais fácil será deixarmo-nos ir na corrente. Contudo, nesta tortuosa encruzilhada, há escolhos que nos obrigam a tomar posição. António Costa, com a tonificada legitimidade resultante de uma maioria absoluta, terá de decidir, preto no branco, em dois casos bicudos, que vão condicionar o futuro do país e o seu lugar como estadista na história de Portugal. Estou a falar no desfecho do truculento processo do novo aeroporto de Lisboa, e na controvérsia sobre a exploração de lítio. Ao longo da história, verificamos que só os grandes estadistas conseguem dizer “não”. As forças que nestes dois casos querem o “sim”, julgam-se tão poderosas que já estavam perto da meta, mesmo antes de a corrida ter começado. O problema é que, pesando os prós e os contras, verificamos que os motivos do “sim” são bastante mais leves do que os do “não”. O lítio, neste contexto, interessa conjunturalmente à indústria automóvel europeia, até surgir uma melhor tecnologia para baterias eléctricas. A mobilidade eléctrica, sendo positiva, não é gratuita. Qualquer projecto mineiro tem um preço muito elevado na destruição da biodiversidade (uma disfunção ambiental tão grave como a das alterações climáticas), na perda de solo arável, na contaminação dos lençóis freáticos e na degradação da paisagem. Esse preço seria definitivo para quem ficaria refugiado ambiental na sua própria terra, e lesaria a futura política nacional de adaptação. Para daqui a 30 anos, só temos duas certezas: a conta a pagar pela alucinação do crescimento será muito maior; quem cá estiver continuará a precisar de ter alimento e abrigo. Todos somos convocados pela nossa consciência, mas só a António Costa, na solidão que o poder e a responsabilidade conferem, caberá decidir por todos.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado em 12 de Fevereiro de 2022, Diário de Notícias, p. 11.

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