SERENIDADE ENTRE ABISMO E SILÊNCIO

AS PALAVRAS QUE EU SOU DE RESENDES VENTURA

Dez anos após a sua morte, Manuel Medeiros, um conhecido livreiro que há meio século fundou uma livraria (Culsete) que se transformou em instituição cultural na cidade e na região de Setúbal, renasce agora para a literatura de língua portuguesa como um poeta pleno, formalmente maduro, com uma escrita original e criativamente reflexiva. As Palavras que Eu Sou é o título deste livro onde se reúnem 498 poemas de Resendes Ventura (o seu nome literário). Esta obra começou a ser concebida nos derradeiros meses de vida do Poeta. Foi a sua mulher, companheira e musa de toda a vida, Fátima Ribeiro de Medeiros, quem levou a cabo o árduo e minucioso trabalho de levantar e organizar um espólio literário disperso em muitos suportes, incluindo envelopes usados, catálogos, guardanapos de restaurante…A obra é acompanhada – para além do verdadeiro mapa genealógico dos poemas de Resendes Ventura oferecido pelo texto de Fátima Ribeiro de Medeiros – de um estudo introdutório sobre o percurso literário do Autor assinado pelo escritor Urbano Bettencourt. Não sendo uma Obra Completa, este livro oferece, no entanto, uma perspetiva ampla e criteriosa sobre meio século de produção poética de um criador que ganhou pelo seu mérito e talento um lugar próprio na literatura portuguesa contemporânea.

Uma vida, duas vocações

Manuel Pereira Medeiros nasceu em São Miguel (14 01 1936) e faleceu em Setúbal (24 10 2013). Ordenado sacerdote em agosto de 1959, oficiou na Igreja Matriz de Ponta Delgada e lecionou Religião e Moral no Liceu Antero de Quental. Em 1968 escolhe um novo rumo de vida e de geografia. Após rápida passagem pelo jornalismo no tempo da censura, abraça com espírito de missão a profissão de livreiro em 1969, na Livraria Nosso Tempo, em Lisboa. Muda-se para Setúbal definitivamente em 1970. Conhece Fátima Ribeiro de Medeiros, a paixão e musa sempre presente da sua vida, em 1972, e com ela funda a livraria Culsete em 1973. Nos 40 anos seguintes, a Culsete (que ainda existe, com uma nova gerência) transformou-se numa instituição ao serviço do livro, da leitura, dos leitores e dos autores, com impacto regional e nacional. Conferências, lançamentos, debates. As maiores figuras literárias do país por ali passaram. Foi sob os auspícios de Manuel Medeiros que eu próprio, na altura jovem estudante liceal, editei e lancei o meu primeiro livro, Voragem dos Dias, em 9 de abril de 1974, com apresentação do poeta Helder Moura Pereira. A partir do Outono de 2001, com o diagnóstico de uma grave doença pulmonar a sua vida altera-se profundamente, mas com o enfraquecimento do corpo, parece aumentar o impulso para viver, para ampliar, projetar, pensar e refletir a vida através da escrita poética. Estou convencido de que alguns dos seus poemas sobre o tema da morte, pela sua originalidade e contenção formal, partilham da energia reflexiva que encontramos em Jorge de Sena ou José Gomes ferreira.

A vocação de livreiro abafou durante muito tempo a vocação de poeta, que se tinha manifestado ainda nos Açores, há 60 anos, com a publicação em Ponta Delgada dos primeiros poemas no livro Passos de Viagem, tendo Manuel Pereira como primeiro e juvenil nome autoral. O nome poético de maturidade, aquele que se manifesta nos anos finais da sua vida, quando a vocação literária se torna imperativa e dominante será o de Resendes Ventura. Nele se juntam, num exercício de respeito genealógico, os nomes dos avós materno e paterno. Até à publicação desta obra fundamental, a escrita poética de Resendes Ventura plasmara-se nos seguintes títulos: Passos de Viagem (1963); Mãe D’Alma (1993); Papel a Mais (2009); A Noite Enlouqueceu o Silêncio (2013). Para além de poemas publicados em plaquettes e antologias literárias.

Ser no Tempo

A poesia de Resendes Ventura é dominantemente reflexiva. Há nela um pensamento sobre o mundo que integra e transcende a contemplação estética. Há uma cosmovisão poética muito diversificada, mas, sem prejuízo de uma larga variedade de temáticas e registos, considero que as duas colunas essenciais que a suportam são as seguintes.

Primeira, uma espiritualidade intensa, mas que recusa cristalizar-se em ídolos, a ainda menos manifestar angústia pela sua perda. A experiência de viver no mundo é uma constante busca por uma identidade, flexível e expansiva, ligando-se aos outros e às coisas que chamamos ambiente. Uma identidade definida pelo Amor como força gravitacional que nos une uns aos outros e à beleza do mundo, que tem sempre o Mar no seu horizonte, como convém a um ilhéu. Um amor devotado, apaixonado, que abraça o universal nos nomes concretos da mulher, dos filhos dos amigos. Há uma presença da transcendência, mas como mistério e desconhecido, não como imponente vigilância de um Deus, ou pavor pela sua substituição pelo Nada, como às vezes parece assomar no grande Antero de Quental, que Resendes Ventura tinha como uma inspiração fundamental. A segunda coluna que sustenta esta poesia tende a transformar o enigma do tempo numa metonímia do mundo. A poesia estabelece uma vinculação às diferentes experiências e escalas do cosmos, a micro e a macro. A importância do futuro aponta para uma espécie de fusão entre a consciência e a realidade ontológica maior, quando se pensa a poesia como ligação ao Grande Silêncio e â Grande Solidão. Nessa medida, o tempo e a morte fundem-se numa atenta e serena espera pelo desconhecido, que o Poeta aceita com sabedoria e coragem.

Três Poemas

Último lume
(12 05 2002)

Das gavetas que restam
Faz um último lume
No silêncio das coisas
Confirmando o destino

Até e sempre a beleza
(30 03 2013)

Para dizer a beleza que a meus olhos trazes
e os outros e tantos e o tanto mais em mundo e luz
chamo o outro de mim que já fui e sou ainda.
Agora em muito vencido ela vai como vês
por este que o domina, também sou, e o desterra,
mas concede precisos momentos à beleza.

Como a vida acaba
(último poema, escrito em outubro de 2013)

Talvez possa dizer-me
que a vida acaba
com este momento
Como um momento


que não vivi
Momento que não vivi


imagem da minha morte
o tempo é mais do que eu sou
não há angústia mais forte


Largo horizonte me abro
por um verso que rasuro
sei o que é perder a vida
tentando saltar o muro


Nem por sombras ficarei
tão preso que não me evada

Resendes Ventura, As Palavras que Eu Sou,
Ponta Delgada, Letras Levadas Edições, 2022,
693 pp. PVP: € 26, 00.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, na edição de 19 de abril a 2 de maio de 2023, p. 33.

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