SEREMOS GOVERNADOS POR VENUSIANOS?

Em 1988, o genial realizador John Carpenter apresentou mais um filme bem-sucedido. Intitulava-se ‘Eles Vivem’ (They Live) e contava com atores importantes como Ray Nelson, Keith David ou Meg Foster. Estávamos no final das presidências Reagan, no início da era neoliberal que transportou o mundo à atual situação de bloqueio generalizado quanto às possibilidades de futuro, onde se destaca uma crescente e brutal desigualdade. Curiosamente, nesse ano foi formado o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), no seio das Nações Unidas, cujo trabalho não impediu que mais de metade de todas as emissões históricas de gases com efeito de estufa (GEE) tenham ocorrido depois dessa data. Contudo, o argumento do filme de John Carpenter abordava um tema sem aparente ligação direta com as alterações climáticas. A trama consistia na descoberta de uma conspiração fundada num pacto de poder entre uma civilização alienígena invasora e as elites políticas e económicas humanas do planeta. Essa civilização, que com facilidade corrompera governos e bilionários, iniciara a colonização da Terra. Os heróis do filme desmontam uma rede de tecnologia mediática, omnipresente no espaço público, que incitava, de modo inconsciente e invisível, à obediência, à ausência de pensamento crítico, à passividade, ao consumismo…. Os aliens viviam entre nós, mas só com uns óculos especiais poderiamm ser identificados…

Interrogo-me muitas vezes se não poderíamos estender o argumento do filme ao problema da crise global e climática. Quem sabe se John Carpenter, numa eventual sequela dessa obra, não poderia alargar e aprofundar o argumento inicial. Na verdade, olhando para o estado do mundo, o que vemos é o absoluto contraste entre a completa manipulação que os governos e empresas realizam, com a falsa promessa de que estão preocupados com o enfrentar dos problemas, e a dura realidade de um aumento da gravidade global da crise global. Isso leva, por exemplo, um dos maiores cientistas mundiais, o canadiano William E. Rees, a escrever, num artigo tão poderoso quanto rigoroso e abrangente, que estamos a caminhar para uma abrupta queda da população mundial (o desaparecimento em condições dramáticas de milhares de milhões de pessoas) antes do final do século (1). W. E. Rees foi o principal criador do indicador de “pegada ecológica” (ecological footprint), há quase 30 anos. Ele sabe do que escreve: nos últimos 200 anos, isto é, nas mais recentes 8 gerações – de entre as 10 000 da nossa espécie – a população cresceu 8 vezes, mas o produto interno bruto mundial foi multiplicado por 100 vezes, conduzindo a ecologia planetária – do clima à biodiversidade, passando pela água ou pela qualidade dos solos – a um estado crescentemente incapaz de suportar o atual modelo de civilização humana, baseado no mito suicida de uma economia de crescimento exponencial (2). Na verdade, esses extraterrestres que, em aliança com a elite do poder e do dinheiro, nos governariam, nessa eventual novel produção ficcional de Carpenter, bem poderiam ser provenientes de Vénus, pois as mudanças antrópicas que estão a ser efetuadas no planeta Terra aproximam-nos cada vez mais de Vénus, um planeta dominado por uma atmosfera de efeito de estufa (composta 96,5% por dióxido de carbono, e 3,5% por azoto), com uma temperatura média à superfície de 467 ºC!


Figura 1: A ligação direta entre consumo de energia fóssil e crescimento demográfico (Fonte; W. E. Rees, 2023).

Apesar dos trágicos eventos que se acumulam ao longo dos anos, em particular nos períodos estivais, o combate às alterações climáticas, uma das frentes críticas da crise global do ambiente, continua a ficar retido nas palavras fáceis de políticos e empresários. Em 2021, 82% da energia primária mundial era proveniente de combustíveis fósseis. Mesmo antes da guerra da Ucrânia, a sua tendência de uso estava em crescendo e não em declínio. No ano de 2022, os países do G20, as maiores economias do mundo, mais do que duplicaram os subsídios às empresas e consumidores desses combustíveis que são a causa principal do aquecimento global: 1, 4 biliões de dólares (3). O dinheiro dos contribuintes está a ser dado às empresas, também, para novas jazidas de gás natural e novos poços de petróleo, até para novas minas de carvão! O valor oferecido pelos governos às empresas para esses novos investimentos atingiu 440 mil milhões de euros em subsídios (4). Os objetivos do Acordo de Paris de redução em 45% das emissões de gases de estufa até 2030 (em relação ao ano de 2010), e de neutralidade carbónica até 2050, são pura fantasia, para não dizer uma descarada mentira. A tendência atual aponta para que as emissões de GEE aumentem ainda 10,6% até 2030 (5). Por outro lado, em 2050, em vez de neutralidade carbónica ainda teremos, na oferta mundial de energia, uma quota de dependência acima dos 60% (6). Mesmo que aqueles que nos governam sejam gente de carne e osso, a verdade é que a sua preocupação é a de continuar a mandar, ainda que seja sobre o inferno de caos e sofrimento para onde empurram a história da humanidade.


Referências

(1)Rees,W.E. The Human Ecology of Overshoot: Why a Major ‘Population Correction’ Is Inevitable. World 2023, 4, 509–527: https://doi.org/10.3390/world4030032;
(2) Roser, M.; Arriagada, P.; Hasell, J.; Ritchie, H.; Ortiz-Ospina, E. 2023: https://ourworldindata.org/economic-growth;
(3) IEA. Fossil Fuels Consumption Subsidies 2022. International Energy Agency. 2023: https://www.iea.org/reports/fossil-fuels-consumption-subsidies-2022;
(4) International Institute for Sustainable Development, Fanning the Flames: G20 provides record financial support for fossil fuels, byBy Tara Laan, et alia, August 2023: https://www.energypolicytracker.org/G20-fossil-fuel-support;
(5) United Nations. Climate Plans Remain Insufficient: More Ambitious Action Needed Now. 2022: https://unfccc.int/ news/climate-plans-remain-insufficient-more-ambitious-action-needed-now;
(6) IEA. World Energy Outlook 2022—Key Findings. International Energy Agency. 2022: https://www.iea.org/ reports/world-energy-outlook-2022/key-findings


Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de letras, edição de 6 de setembro de 2023, p. 31.

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