Uma vaga de violência, estupidez, e indigência moral percorre o mundo. Entrámos, tanto no plano individual como na esfera política e das relações internacionais, numa aceleração sombria da história em que o respeito declina perigosamente. Os insultos visando a mais recente Miss Portugal, Marina Machete, uma mulher trans de 28 anos, fazem parte da erosão dessa distância interpessoal, protetora das relações humanas: o respeito. As ofensas, sobretudo quando proferidas por reputados formadores de opinião, incitam à humilhação, à negação de quem é diferente. Conheci entre os meus alunos alguns jovens trans. Apercebi-me do drama de viver um permanente conflito de identidade dentro do seu próprio corpo. De como isso surge desde a mais tenra infância (não é uma escolha). Sei do sofrimento das famílias, dos pais e mães que o são incondicionalmente, capazes de defender os seus filhos, estando a seu lado no caminho que é preciso trilhar para que a conformidade entre o eu e o seu corpo seja instaurada. Quem não compreende isto, deveria, pelo menos, abster-se de agredir. Mas para isso, seria preciso ter respeito.
O “cemitério de crianças” de Gaza (expressão da UNICEF) é a face nua e extrema a que a falta de respeito conduz: a vertigem da fúria, o banir de alguém da condição humana, para legitimar a sua destruição. O governo de Israel serve-nos como guerra defensiva, um massacre indiscriminado de gente encurralada num grande campo de concentração. Os milhares de crianças, mulheres e idosos palestinianos, as centenas de médicos, enfermeiros, funcionários da ONU e jornalistas mortos, não chegam para envergonhar os responsáveis e cúmplices desta vingativa e cruel punição coletiva. Mesmo sem esta tragédia descambar numa catástrofe ainda maior, Israel ficará mais vulnerável do que nunca. Hannah Arendt, uma genial filósofa judia, sobrevivente do Holocausto, meditou, na sua obra A Condição Humana (1958), sobre a relação entre perdão e respeito. Foi no Novo Testamento que Arendt encontrou a força política do perdão: “A liberdade contida nos ensinamentos de Jesus sobre o perdão é a libertação da vingança”. O perdão estabelece uma relação entre as partes envolvidas num ciclo de retaliação sangrenta e interminável. Mas para haver perdão é indispensável existir respeito entre ambos os lados do gesto de perdoar. Não é amor, nem sequer amizade. O respeito implica reconhecer o outro como alguém que partilha, de pleno direito, um mundo comum. Alguém indispensável para que o ciclo da violência seja interrompido, e a vida de todos se liberte para o horizonte da paz.
Em 7 dezembro de 1970, são imagens que guardo da minha adolescência, vi na televisão o chanceler Willy Brandt em Varsóvia, ajoelhado, sob a chuva, prestando homenagem aos milhões de polacos mortos na II Guerra Mundial, iniciada com a invasão alemã desse país. Que poderosa imagem de procura do perdão entre dois povos! Se o gesto de Willy Brandt marcou um início promissor, a respeitosa visita de condolências que o líder da OLP, Yasser Arafat, efetuou em 1995 a Leah Rabin – viúva do líder israelita Yitzhak Rabin, assassinado pelos extremistas da linha de Netanyahu – assinalou o crepúsculo da maior esperança de reconciliação na Palestina. Parece impossível, hoje, neste labirinto enlouquecido por ódio e morte, mas sem a coragem do respeito – dessa distância que é condição de proximidade – não haverá perdão nem paz. Tanto na Palestina como na Terra inteira.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 4 de novembro de 2023, página10.