Se não mudarmos o tecido económico, não seremos capazes de enfrentar a crise ambiental e climática

“As alterações climáticas são a única crise realmente planetária que existe. São intensamente sentidas até nos extremos norte e sul do planeta. Não há santuários”José Alex Gandum

É preciso “dar um preço”, um valor económico, “à preservação, proteção, promoção e restabelecimento das diferentes partes do Sistema Terrestre, como a água, a biodiversidade, as florestas e as paisagens”, afirma ao Expresso o professor catedrático de filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Viriato Soromenho Marques tem investigado os contributos do federalismo constitucional norte-americano e da construção europeia para os modelos de governação mundial na era da crise global do ambiente. Foi conferencista em várias universidades nacionais e estrangeiras e tem desenvolvido intensa atividade no movimento associativo ligado à defesa do ambiente. Integrou o Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável e a equipa que elaborou a Estratégia Nacional para o Desenvolvimento Sustentável. Foi coordenador científico do Programa Gulbenkian Ambiente. Pertenceu ao Grupo de Aconselhamento de Alto Nível na Energia e Alterações Climáticas da Comissão Europeia. Deu mais de mil conferências e cursos em Portugal e 23 outros países. Publicou quatro centenas de estudos e dezenas de livros sobre temas filosóficos, político-estratégicos e ambientais. E é presidente da assembleia-geral da Casa Comum da Humanidade (CCH).

Desde 23 de setembro, a CCH, organização global com sede em Portugal, na Universidade do Porto, está a realizar uma campanha de divulgação internacional da sua iniciativa “Um Sistema Terrestre, um Património Comum, um Pacto Global”, em parceria coma a agência de notícias The Planetary Press. A campanha conta com uma série de entrevistas feitas por esta agência, gravadas em podcast e transcritas em inglês, português e espanhol – as “Conversas da Casa Comum ONU75” – a personalidades de projeção internacional. As primeiras 14 entrevistas são acompanhadas por vídeos com animações sobre as propostas da CCH.

O Expresso publica todas as quartas-feiras uma entrevista e um vídeo associado enquanto durar a campanha, que está também a decorrer nas redes sociais e através de newsletters. Pode ver as 12 primeiras entrevistas e vídeos em: Will Steffen, Maria Fernanda Espinosa, Izabella Teixeira, Paulo Magalhães, Karl Burkart, Janene Yazzie, Kim Sang-Hyup, Hindou Ibrahim, Prue Taylor, Richard Ponzio, Klaus Bosselmann e Ana Barreira. E pode ouvir a entrevista completa, em inglês, a Viriato Soromenho Marques AQUI.

A CCH propõe o reconhecimento do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, para restaurar um clima estável, criar um novo modelo de governança para os recursos naturais comuns do planeta e promover um novo Pacto Global para o Ambiente junto da ONU, que acabe com o atual impasse nas negociações climáticas. Para concretizar este objetivo, a CCH está a organizar uma coligação global de conhecidos cientistas do Sistema Terrestre e da sustentabilidade, juristas, economistas, sociólogos, Estados soberanos, ONG, organizações internacionais, autoridades e comunidades locais, povos indígenas e universidades.

A Casa Comum da Humanidade tem como fundadores sete universidades portuguesas, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o Ministério do Ambiente e Ação Climática, as Câmaras Municipais do Porto e de Gaia e especialistas de todo o Mundo. E tem também uma série de parceiros além da The Planetary Press, como a Global Pact Coalition/Club de Jurists (França), a organização One Earth da Rockefeller Philanthropy (EUA), a MAHB – Millennium Alliance for Humanity and the Biosphere da Universidade de Stanford (EUA), o IIDMA – Instituto Internacional de Derecho y Medio Ambiente (Espanha), a Rede CPLP Ambiente (Portugal), três universidades brasileiras, a The Planetary Accounting Network, a organização Global Voice (EUA), a Australian Earth Laws Alliance (Austrália) ou a Coalition for Our Common Future (Coreia do Sul).

“Precisamos de encontrar um novo sistema internacional, porque hoje estamos completamente à deriva, a ONU é uma imagem pálida de uma organização internacional forte e ativa”

Ensina filosofia política, filosofia da natureza e ideias europeias na Universidade de Lisboa, e foi também um dos autores da estratégia portuguesa para desenvolvimento sustentável. O que destaca nestas experiências?

O que estou a tentar fazer com as minhas atividades é dar uma contribuição para lidar com os problemas coletivos da Humanidade, porque precisamos de políticas públicas. Mas precisamos de ultrapassar o atual entendimento muito limitado do que está em jogo com a crise ambiental e climática. Se pensarmos que este problema é para ser resolvido apenas por governos e grandes empresas, estamos errados. Porque na raiz deste problema é necessária uma mudança profunda no conjunto de valores da nossa visão do mundo. E para a realizar, precisamos também da contribuição da cultura, da ética, da religião. Portanto, todos nós somos atores nesta luta pela continuação da sobrevivência da civilização na Terra. Considero as alterações climáticas não como algo que existe por si, mas como uma dimensão da crise ambiental, onde podemos identificar cinco dimensões únicas. Primeiro, o clima é a única crise realmente planetária que existe. As alterações climáticas são intensamente sentidas no extremo norte e no extremo sul do planeta, em regiões em que quase não há ninguém vivo.

Ou seja, não há santuários protegidos do impacto das alterações climáticas?

Não. Em segundo lugar, é uma crise irreversível e entrópica. Sabemos que temos uma extinção maciça da biodiversidade, e quando uma espécie desaparece, é para sempre. Há também uma terceira dimensão: a aceleração cumulativa, dentro da nova era geológica do Antropoceno. O que está a acontecer com a acidificação dos oceanos é um bom exemplo desta aceleração rápida acumulada. E uma quarta característica é a existência de um crescimento da agitação política e social. Sabemos que muitos conflitos atuais dentro de países e entre países têm também a marca da crise ambiental. Provavelmente a Primavera Árabe nunca teria acontecido sem o impacto das alterações climáticas. Finalmente, estamos a criar um tipo de dívida ontológica entre gerações. Estamos a transmitir às gerações vindouras a necessidade de se adaptarem, não em termos de dinheiro ou capital, mas do mal que estamos a fazer ao software do planeta – à biosfera, à atmosfera, à hidrosfera. Ou seja, estamos a transmitir uma dívida ontológica a ser paga pelas próximas gerações.

No seu livro “Segurança numa Encruzilhada – Novas Ferramentas para Novos Desafios”, destaca as sete categorias de segurança humana. Quais são os desafios que as alterações climáticas lhes põem?

Bem, quando falamos de segurança, pensamos imediatamente em termos de estratégia e de equilíbrio militar. Nos últimos 200 anos foi lógico pensar dessa forma, mas hoje está não apenas fora de moda, mas completamente errada. Na verdade, um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) publicado em 1994 avançou com um conceito mais abrangente de segurança humana, tentando olhar também na perspetiva do indivíduo, de nós próprios, do que fazemos como cidadãos dos nossos países e do mundo.

Nessa perspetiva, quais são para nós próprios as principais dimensões e características da segurança?

As sete categorias que mencionou fazem parte desta visão de transformação do paradigma da segurança. Incluem a segurança económica, muito importante num mundo que se desenvolveu para ter mais desempregados por causa da pandemia. Depois vêm a segurança alimentar, sanitária e ambiental. E a ambiental envolve todas as outras. Há também a segurança pessoal, para um indivíduo se sentir seguro independentemente da sua raça, orientação sexual, riqueza material, e a segurança comunitária e política. Estas sete dimensões estão muito ligadas à grande contribuição do presidente americano Franklin Roosevelt, que no famoso discurso do Estado da União em 1941 falou sobre a necessidade de ter, não apenas nos EUA, mas também a nível global, quatro liberdades: de expressão, de religião, de acesso à riqueza material (alimentação, emprego) e do medo, no sentido de vivermos num mundo seguro, sem invasões e guerras. O relatório do PNUD de 1994 que referi é muito harmonioso e vai ao encontro da proposta do Presidente Roosevelt, que não se destina a uma comunidade ou país específico, mas ao mundo como um todo. É a ideia de ter um sistema internacional – e não apenas direito internacional – que seja capaz de assegurar a concretização dessas dimensões de segurança.

E se olharmos para as alterações climáticas e para a crise ambiental, o que vemos?

Vemos que todas estas dimensões estão em perigo. Um exemplo que me chocou: no último verão, no estado do Oregon, nos EUA, que tem cerca de cinco milhões de habitantes, os grandes incêndios provocaram a fuga de 500.000 pessoas (10%). Historicamente falando, estes grandes incêndios começaram em dezembro de 2017. E em Portugal tivemos dois grandes incêndios em 2017, um deles em outubro, que foi um dos mais severos e destrutivos da nossa História. E estes incêndios têm uma ligação direta com as alterações climáticas. Portanto, estamos a falar em segurança. A questão é sobre a continuação da nossa vida na Terra. Temos de mudar drasticamente a forma como estamos a habitar o planeta.

As alterações climáticas podem exacerbar muitas das atuais ameaças, como a insegurança alimentar e as doenças infecciosas. O antigo secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, disse mesmo que não só exacerbariam as ameaças existentes à paz e segurança, como são elas próprias uma ameaça à paz e segurança. Estes efeitos em cascata continuam a ter impacto nos nossos recursos naturais?

Sem dúvida. Os grandes incêndios na Austrália, Suécia ou Rússia são exemplos desses efeitos em cascata. E estamos a assistir a situações de não retorno no Ártico, na grande barreira de corais da Austrália, e provavelmente até a crise do coronavírus está relacionada com a perda de biodiversidade. Porque estamos a invadir como espécie os habitats de muitas outras espécies, a quebrar as fronteiras entre a espécie humana e outras espécies animais na Terra, a cortar os mecanismos de autodefesa entre a nossa espécie não só com a Covid-19, mas também com outras doenças zoonóticas. Assim, a transmissão de vírus dos animais para os humanos é provavelmente o resultado de um ponto de não retorno na biodiversidade. É por isso que precisamos de considerar que as alterações climáticas são parte de uma crise global. E precisamos de encontrar um novo sistema internacional, porque hoje estamos completamente à deriva. Em termos de direito e de sistema internacional, estamos provavelmente no século XIX. Hoje a ONU é uma imagem pálida da necessidade que temos de uma organização internacional forte e ativa. Não estou a culpar a atual secretário-geral, António Guterres, porque é uma questão de organização, de envolvimento dos países. Acima de tudo dos grandes países, como os EUA, China, UE, Índia, Rússia, que precisam de voltar ao espírito original da Carta das Nações e de o cruzar com os novos desafios que enfrentamos. Porque hoje, o mundo é muito mais perigoso do que em 1945. Temos problemas existenciais, alterações climáticas, crise ambiental global, risco de guerra nuclear, que já existia em 1945, mas hoje é maior. Temos também o problema do sistema económico. Estamos muito expostos aos ciclos financeiros e às crises económicas porque falhámos na construção de um sistema capaz de controlar os fluxos financeiros e económicos. Assim, a crise ambiental não pode ser separada da crise económica porque a estrutura económica é o principal motor da Humanidade. Se não mudarmos o tecido económico, não seremos capazes de enfrentar a crise ambiental e climática.

Como pode o futuro Pacto Global para o Ambiente e a proposta da Casa Comum da Humanidade ajudar a salvaguardar as gerações futuras e a assegurar um clima estável?

A ONU está envolvida no processo de criação de um Pacto Global para o Ambiente que será proclamado em 2022, cinquenta anos após a primeira grande Conferência das Nações Unidas em Estocolmo, e também 50 anos após a criação do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA). E a Casa Comum da Humanidade está a tentar não só apoiar esse esforço da ONU, como aumentar a intensidade da mudança. É por isso que estamos a propor a necessidade de integrar no Pacto Global para o Ambiente a ideia de um Tratado sobre o Espaço Operacional Seguro da Humanidade (SOS Treaty), uma convenção global para conferir estatuto jurídico a um importante conceito científico, o Sistema Terrestre, que reflete a realidade da unidade viva da Terra. Há outros planetas rochosos no Sistema Solar, mas o nosso tem um software que é responsável pela vida, o que é uma grande responsabilidade para nós. Assim, o nosso esforço, como cidadãos de diferentes países, é participar no debate de ONU sobre o Pacto Global para o Ambiente. E criar um Tratado sobre o Espaço Operacional Seguro da Humanidade, no qual a comunidade, o direito e o sistema internacionais encontrarão uma nova forma de habitar a Terra baseada na cooperação compensada, e não no atual jogo de soma negativa em que estamos envolvidos, onde o capital natural decresce todos os dias, diminuindo a capacidade da Terra para suportar vida. Esse tratado dará um estatuto legal que permitirá a existência de Estados soberanos e de outros grandes atores internacionais, como as empresas, de modo a termos uma contabilidade da Terra em que podemos, de uma forma muito rigorosa e independente, fazer a contabilização das chamadas externalidades, e dar uma recompensa aos países e empresas pelas externalidades positivas que introduzirem no Sistema Terrestre. E penalizar os atores internacionais que introduzirem externalidades negativas no planeta.

Historicamente as nações têm-se concentrado mais na tentativa de criação de equidade intrageracional em termos de desenvolvimento, dando atenção às gerações atuais e não ao futuro. Iniciativas como a proposta da Casa Comum da Humanidade são críticas para salvaguardar as gerações futuras?

Claro. E há também uma grande dimensão transformadora nesta proposta e diálogo com diplomatas, comunicação social e políticos, porque não podemos fazer nada sem partilhar valores, sem aprender com os outros. É crucial uma mudança no atual padrão de negociação diplomática, que é basicamente o modelo de partilha de encargos. A ideia de que estamos a discutir quotas, limites de emissões, é tão pobre e errada que precisamos de trazer para a mesa de negociações muito mais do que isso. Precisamos de criar um paradigma de diplomacia que é capaz de passar de um jogo de soma zero no qual eu ganho o que você perde e você ganha o que eu perco, para uma diplomacia win-win, para um jogo de soma positiva. E, para criar o Tratado SOS, que dará um estatuto legal ao Sistema Terrestre. E o conceito de Condomínio da Terra poderia ser o protótipo para o novo modelo de negociação. Porque quando temos um condomínio residencial, por exemplo, sabemos que há dois tipos de propriedade: a do nosso apartamento e a dos espaços e funções comuns, como o sistema elétrico, os elevadores, etc. O mesmo deveria acontecer no sistema internacional. Não estamos a dizer aos Estados soberanos que a soberania nacional vai acabar. O que estamos a dizer é que, se nos mantivermos completamente ligados ao antigo modelo de soberania do Estado com quase quatro séculos, vamos perder tudo, incluindo a soberania.

É o que se chama o paradoxo da soberania?

Precisamente. Cada Estado não pode enfrentar sozinho as alterações climáticas, a crise ambiental, a crise financeira ou as pandemias. Veja o que aconteceu na Europa, a pandemia foi enfrentada no início de uma forma muito competitiva, mas agora, depois da cooperação entre os países europeus, temos a esperança de superar a situação pandémica, embora seja muito má. Por isso, a nossa proposta tenta combinar dois tipos de soberania. O primeiro é a soberania clássica, a soberania territorial dos Estados, para funções como o controlo nacional das fronteiras, do comércio internacional, etc. Mas se falarmos da atmosfera, recursos hídricos, oceanos, gestão da biodiversidade, proteção das florestas, estamos a falar de património comum da Humanidade. E neste caso não podemos dividir a gestão, não podemos dizer que somos os donos de uma parte da atmosfera ou do oceano. Se pretendemos realmente superar a s crise climática, a crise ambiental, precisamos de agir em conjunto mesmo com países para os quais temos muitos outros pontos de desacordo. Porque não há atmosfera da China e dos EUA, há apenas a atmosfera da Terra. Por isso, precisamos de traduzir isto em linguagem política, em linguagem jurídica.

Como pode o reconhecimento do clima como Património Comum da Humanidade ser a inovação jurídica de que precisamos nas negociações climáticas após décadas de conversações com poucos resultados?

A única forma de ter uma estratégia concreta e coordenada para enfrentar e superar as alterações climáticas é compreender que estas são um sintoma de crise ambiental. E a crise ambiental é também um sintoma do estado de desordem em que se encontra agora o Sistema Terrestre. Precisamos de combinar e ligar as alterações climáticas com a necessidade de restaurar o Sistema Terrestre. E quando digo restaurar estou a dizer que precisamos de mudar também o tecido económico. Precisamos de dar um preço, um valor económico, não à destruição dos recursos naturais e do Sistema Terrestre, mas à preservação, proteção, promoção e restabelecimento das diferentes áreas deste sistema, como a água, biodiversidade, florestas ou paisagens. E fazê-lo com toda a inteligência, imaginação e força moral que podemos mobilizar.

Entrevista feita por Kimberly White, jornalista e editora da agência norte-americana de notícias de ambiente e de desenvolvimento sustentável The Planetary Press

Tradução e adaptação de Vergílio Azevedo, da entrevista original dada à The Planetary Press. publicada na edição de 27 de janeiro 2021 do jornal Expresso

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