SE ATÉ UM POVO DE DEMÓNIOS…

A Cimeira climática de Madrid (COP 25) terminou com dois dias de atraso, e sem resultados. Só em 2020 é que existe a expectativa de uma nova e mais ambiciosa proposta de metas nacionais de mitigação. Por isso, quando mesmo sem grandes expectativas a má vontade é exposta na praça pública, isso mostra que a possibilidade de se obter uma resposta eficaz ao perigo colossal das alterações climáticas, através deste método, deverá ser nula, ou próxima disso.

A resistência obstinada de países como os EUA, o Brasil, a Austrália, e a cumplicidade de outros, como a Rússia, não deixa de constituir um assunto que merece reflexão. Vamos explorar duas hipóteses explicativas: Primeira: Será que existe incerteza científica? Absolutamente nenhuma. Os últimos anos de investigação apenas têm revelado que os relatórios do Painel Intergovernamental (IPCC) têm subestimado aspectos centrais, como é o caso do ritmo de desaparecimento da criosfera (gelo permanente) e o impacto de retroacções positivas, como as emissões de carbono e metano a partir da degradação do permafrost (solo permanentemente gelado). A mudança climática acelera em intensidade e gravidade. Segunda: os países em causa estão em zonas seguras e as suas populações não correm perigo? Falso. A Austrália atingiu dia 19 a temperatura média mais alta alguma vez registada (41,9ºC). O país tem sofrido incêndios catastróficos, bem como os EUA, com muitas dezenas de mortos e centenas de casas ardidas, algumas até dos mais ricos e famosos. Os EUA podem ter de evacuar 25 milhões de pessoas antes de 2050 por causa da subida do mar. Sobre o Brasil, incapaz de defender 60% do seu território, e a Rússia, com as florestas a arder e a Sibéria a derreter-se, não é preciso acrescentar mais. Não há Planeta B. Trump, Bolsonaro e Putin estão agarrados à Terra como todos nós.

A hipótese mais credível surgiu-me na releitura de um opúsculo de Kant de 1795, Para a Paz Perpétua. Nele, Kant alertava para o risco de a Europa e o mundo – caso não encontrassem uma solução política para abolir a guerra nas relações internacionais – poderem causar o extermínio bélico da humanidade. Por isso, ele considerava que “até um povo de demónios (desde que providos de entendimento)” seria capaz de construir uma organização internacional para manter a paz e garantir a sobrevivência de todos. Para Kant, a “cooperação entre inimigos”, como aquela que evitou a guerra nuclear entre os EUA e a URSS (que teria riscado a humanidade do mapa), não precisava de bondade moral, mas apenas da inteligência, que os diabos, amantes da sua pele, tinham em abundância. A hipótese mais credível para a actual passividade perante a catástrofe ambiental-climática parece-me residir, não na malignidade humana (os diabos são incomparavelmente piores do que nós), mas na nossa ignorância e preguiça intelectual. A combinação entre leviandade ética e ignorância voluntária resulta num veneno letal chamado estupidez. Infelizmente, Trump. Bolsonaro e Putin não foram os únicos a beber desse cálice.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 21 de Dezembro de 2019, página 31.

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