SALUS POPULI SUPREMA LEX ESTO

Este título (“Que a salvação do povo seja a lei suprema”) não consagra apenas uma das teses mais profundas e duradouras da herança romana, mas a própria essência da política em geral na tradição milenar do pensamento ocidental. Numa democracia representativa esse princípio deveria ser ainda mais imperativo, já que – como foi recordado por Lincoln em 1863 no cemitério militar de Gettysburg – o tipo ideal do sistema democrático constitucional é o do “governo do povo, pelo povo, para o povo”. As peripécias do atual governo de maioria absoluta são, talvez, um indicador do crescente esgotamento das energias e competências não apenas do partido que ocupa sozinho as cadeiras do poder executivo, mas também sinal do aparente cansaço do sistema partidário de onde poderia brotar uma alternativa, e, atrevo-me a dizer, um sintoma de desvinculação da realidade por parte dos órgãos de soberania. A maior prova disso não se encontra nos episódios lamentáveis, mas menores, de biografias tortuosas de governantes, de gestores de falências com indemnizações milionárias, ou de sumptuosos altares nada condizentes com a humildade franciscana do Papa que o país receberá em breve. O problema reside no modo negligente, irrefletido e mimético como Governo, Assembleia da República e Presidência têm tratado a questão da guerra provocada pela invasão russa da Ucrânia.

UMA COISA é a justeza e o consenso nacional na condenação da invasão de um país reconhecido pela comunidade internacional, incluindo oferecer todo o apoio humanitário que nos seja possível para tornar menos penosa a vida dos refugiados ucranianos que nos procuram, ou ajudar as instituições de proteção civil e de saúde pública que na Ucrânia acodem as vítimas dos combates. Outra coisa bem diferente é entrar numa escalada militar de apoio ao governo de Kiev, seguindo em grande medida uma agenda de apoio bélico ditada pelo próprio, sem ponderar as consequências que daí poderão decorrer para a segurança global e, no que nos diz respeito, sobretudo nacional. Invocar a nossa pertença à OTAN ou à UE como motivo para imitar os aliados, sem o esforço de ponderação do nosso interesse próprio, é uma desculpa preguiçosa. Não temos qualquer obrigação militar perante a OTAN, pois o artigo 5.º da “defesa mútua” não se aplica ao caso presente da Ucrânia, país que não pertence à organização do Atlântico Norte. Nem a UE tem qualquer estrutura ou estratégia de defesa comum, desde que em 1954 gaulistas e comunistas abortaram o Tratado da Comunidade Europeia de Defesa no Parlamento de Paris.

Esta guerra é desde o seu início o evento internacional mais perigoso depois de 1945. Infelizmente, nos círculos políticos parece ser subestimado o facto de que cada acha na pira militar faz subir um grau no nível de hostilidades. Aumenta não só o número de vítimas, mas também o risco impensável, mas bem real nos arsenais atuais, de se resvalar para a twilight zone do confronto nuclear em larga escala. Qualquer governo europeu, incluindo o português, deveria colocar como prioridade máxima a salvaguarda da sua população contra o risco de o seu território ser um alvo direto ou indireto (através do fallout radioativo resultante de explosões nucleares). O entusiasmo belicista, bem patente na declaração pessoal de guerra que a MNE alemã fez a Moscovo, é visível também na Grã-Bretanha ou na Polónia. O brio castrense da maioria da opinião escrita, evoca o sinistro entusiasmo europeu nas primeiras semanas de agosto de 1914. Que a razão jurídica não esgota a complexidade do real, sobretudo quando se morre nos campos de batalha, é algo esquecido no atual jardim europeu, onde, com a modéstia lusa de sempre, procuramos fazer boa figura. Na verdade, será nos limites da razão de Estado das duas potências que contam, os EUA e a Rússia, que será decidido ou o cessar das hostilidades ou a escalada para a autodestruição geral.

A DIPLOMACIA é a capacidade de escutar as razões dos outros, sobretudo daqueles que são potenciais inimigos. Esta é uma guerra sem vitória possível e que poderia ter sido evitada diplomaticamente, se os países europeus, que partilham uma vizinhança histórica com a Rússia, tivessem tido maturidade e coragem para contrariar a obstinação dos EUA, nunca abandonada desde a cimeira de Bucareste em 2008, de integrar a Ucrânia na OTAN, apesar das reiteradas reservas e sucessivos alertas russos de que tal constituía uma inaceitável linha vermelha de segurança. Depois de iniciada a guerra, o que teria sido sensato seria travar diplomaticamente as hostilidades, garantindo o Estado ucraniano, deixando a questão territorial para negociações de segurança europeia posteriores. Reconstruir a paz será obra de muitos anos. O que importa agora é estancar a escalada da violência, cessando as hostilidades. Há exemplos dessa espécie de paz imperfeita: recorde-se que ainda não existe um tratado de paz entre as duas Coreias, apesar do fim dos combates em 1953; os Montes Golã separam, desde 1973, dois países, Israel e Síria, tecnicamente ainda em estado de guerra.

O caminho alternativo seguido com o abandono das negociações iniciais, foi o de apoiar militarmente Kiev, sem envolver a OTAN diretamente com forças no terreno. O pressuposto subjacente a essa posição parece-me irrealista e cruel. Irrealista, porque a ideia de que a Ucrânia, com apoio material da OTAN, poderia vencer sozinha a Rússia não resiste a uma análise objetiva mínima da relação de forças entre os dois países. Aliás, essa implícita subestimação das capacidades militares da Rússia, entra em total contradição com o fruste argumento usado por muitos partidários desse apoio militar, segundo o qual se a Rússia não for travada, Moscovo continuará a guerra para Ocidente. Cruel, na medida em que, embora enfraqueça a Rússia – como o secretário de Estado da Defesa, Lloyd Austin, definiu ser um dos objetivos dos EUA – continuará a implicar um enorme preço para a Ucrânia, pago em vidas, destruição de património, e perda de território.

TUDO INDICA que estamos nas vésperas de uma grande ofensiva russa. Se no rescaldo desse confronto, a posição de Kiev se tornar insustentável, os EUA e os seus aliados poderão ainda arriscar o confronto convencional direto com a Rússia. Nesse caso, teríamos atingido o culminar da loucura coletiva. Só quem acreditasse em milagres esperaria que uma Rússia derrotada por forças militares convencionais da OTAN não iria usar – como o fariam os EUA, a China, a França, ou a Grã-Bretanha se encurralados num beco sem saída semelhante – todo o seu potencial nuclear. Apesar de ter lido longamente Herman Kahn, na sua pregação nos anos 60 sobre a moderação na escalada nuclear, nunca acreditei que num contexto vertiginoso e infernal de cidades a serem vaporizadas, exista algum líder com sangue-frio para fazer cálculos de mitigação de danos no inimigo. Se ultrapassarmos o patamar nuclear nesta guerra, passaremos das relações internacionais para a teologia, da geopolítica para a encomendação das nossas próprias almas.

Já basta termos traído as gerações mais jovens, entregando-lhes um planeta em desagregação ambiental e climática. É tempo de a força da razão se sobrepor à temeridade insensata, disfarçada de coragem. Portugal deveria estar do lado do fim urgente das hostilidades, como primeiro e frágil passo para construir uma paz que a todos deve comprometer. Continuar a alimentar esta guerra, mais tarde ou mais cedo, terminará numa catástrofe irreversível.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 11 de fevereiro 2023, p.11.

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Maria Caxias

Uma análise de extrema pertinência muito bem explicada. É um texto pedagógico cujo conteúdo merecia ser melhor desbravado perante uma audiência de programa televisivo.
Incluindo outros intelectuais e militares conhecedores da história.