SÁBADO, 22. 08. 1914

“Sangue, sangue, há-de chegar a beber-se sangue no chão – rezam os vaticínios”. Com estas palavras encerrava Aquilino Ribeiro a sua entrada de 22 de Agosto de 1914, num diário que daria origem à sua obra É a Guerra (Livraria Bertrand, 1958). O escritor português, vivendo nessa altura em Paris, com a sua mulher alemã e o seu filho de tenríssima idade, descreve as primeiras semanas de guerra a partir da capital francesa, antes de procurar abrigo seguro para a sua família em Portugal. Aquilino descreve, quase como um cientista elaborando um protocolo laboratorial, a vertiginosa transição química das almas de uma época de paz e narcisismo europeu para uma era que incendiou a Europa, até 1945, no holocausto dos ódios nacionalistas. Desde Waterloo (1815) que os europeus não testemunhavam nenhuma guerra europeia generalizada (as campanhas prussianas de 1864 a 1870, contra a Dinamarca, a Áustria e a França foram breves e cirúrgicas). Os europeus limitavam-se a refregas menores contra povos colonizados na África e na Ásia, sem capacidade militar para poderem rivalizar com o seu poderio tecnológico. Há exactamente 106 anos, a França sofreu o maior número de mortos militares num só dia de batalha da história moderna. Na abertura da ofensiva do Somme, em 1 de Julho de 1916, os britânicos perderiam perto de 20 000 homens. No início da sua grande ofensiva de Primavera de 1918 (a Kaiserschlacht, iniciada a 21 de Março), a Alemanha sacrificaria quase 11 000 soldados. Nesse tórrido 22 de Agosto de 1914, numa frente ampla nas zonas fronteiriças da França com a Bélgica e a Alemanha, Paris perderia 27 000 militares. Nesse dia decidiu-se a derrota francesa na chamada Batalha das Fronteiras, mas o mais impressionante é o recalcamento que ainda persiste na historiografia da Grande Guerra (e não só da francesa), privando esses mortos do direito à memória do seu sacrifício absurdo.

A mais importante causa desse banho de sangue terá sido a incompetente preguiça do Estado-Maior gaulês, com Joffre à cabeça, que continuava a fazer planos de batalha para o século XIX, tentando reencenar a ousadia de Napoleão através da doutrina da “ofensiva extrema” (l’offensive à outrance), ignorando o exponencial aumento do poder de fogo obtido com as modernas espingardas, as metralhadoras pesadas e uma artilharia cada vez mais certeira. Os soldados franceses foram lançados em vagas sucessivas, envergando os seus suicidários uniformas azul e vermelho, contra forças alemãs melhor treinadas e mais inteligentemente comandadas. Mas o que importa pensar são as razões que mantiveram essa fábrica de morte a funcionar depois desse dia. Como foi possível as nações odiarem-se como se fossem espécies biológicas inimigas, como pressentiu Andrade Corvo em 1870? O que levou os europeus a devorarem-se durante décadas, imitando a carnificina entre gregos na Guerra do Peloponeso, como antecipou Nietzsche em 1878? Alguém acredita que poderemos estar tranquilos, e que mesmo com uma viril cultura da paz democrática esses demónios jamais tentarão regressar do seu inferno?

Viriato Soromenho-Marques

Publicado na edição de 22 de Agosto de 2020, do Diário de Notícias, p. 12.

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Paulo Rodrigues

Os “demónios” de 1914 não serão os mesmos que andam pelos corredores do eurogrupo, do conselho europeu e comissão europeia?
Talvez tenham apreendido que a destruição provocada pelas duas guerras mundiais tenha sido demasiado má para os negócios, mas as tensões são as mesmas.
Não é o euro um novo projeto colonial?
Não foram as ambições coloniais a causa da i guerra mundial?