Na altura em que escrevo, a Europa já foi atingida desde final de Junho por duas ondas de calor, que quebraram recordes de registos meteorológicos da França à Noruega. Depois de décadas de negação ou mera preocupação retórica, pelo menos na Europa ninguém se atreve a negar a óbvia realidade do aquecimento global. Contudo, seria preciso ser muito ingénuo para acreditar que os mesmos actores políticos que continuam a dar generosos subsídios públicos ao uso de carvão, petróleo e gás natural, e que negociaram moratórias – atrasando a transição energética para fontes renováveis – com as grandes empresas emissoras de gases de efeito de estufa, das petrolíferas ao sector automóvel, passando pelas cimenteiras e pela aviação, se tornem agora nos paladinos de uma efectiva mudança.
Suspeito que em Portugal nem um só partido deixará de ter no topo do seu programa eleitoral a questão climática. Contudo, nem em Portugal nem na Europa me parece que exista um punhado de líderes que perceba a real magnitude do que está em causa. Se o registo não fosse o do oportunismo e da propaganda, estaríamos neste momento a reconstruir a UE – nos seus princípios, objectivos e instituições – do mesmo modo como o faríamos se um implacável exército inimigo marchasse para nos submeter à mais ignóbil escravatura. O problema é que o inimigo está dentro de portas, naqueles que, rodeados de uma corte de aliados e beneficiários poderosos e prestáveis, colocam as suas agendas pessoais imediatas à frente do interesse comum e da segurança das gerações futuras (veja-se a recepção hostil dada a Greta Thunberg no Parlamento francês).
As grandes mudanças que já se sentem no nosso quotidiano, correspondem apenas a um aumento da temperatura média global de 1ºC em relação ao período pré-industrial. Ninguém acredita que se consiga evitar um aumento de 2ºC, a ocorrer, provavelmente, em meados deste século. Como se trata de um processo não linear, a intensidade das consequências não será do tipo aritmético, mas mais próxima de uma progressão exponencial. Quando a subida do nível médio do mar começar a desalojar milhões de habitantes das zonas litorais, criando refugiados dentro dos próprios países, a política passará a ser uma espécie de estado de excepção permanente com riscos evidentes para a sobrevivência das instituições democráticas. Tudo isto poderia ainda ser mitigado, mas para tal seria preciso uma cura de verdade nunca vista. Em vez de nos distrairmos com viagens tripuladas a Marte, que jamais ocorrerão nas condições actuais, melhor seria que tentássemos evitar aquilo para que o cientista James Hansen, o maior pioneiro vivo das ciências climáticas, nos alertou num livro de 2009: se consumíssemos todos os combustíveis fósseis disponíveis, iniciaríamos uma inexorável reacção em cadeia que transformaria, em escassos séculos, a Terra num segundo planeta Vénus. Seria não apenas um suicídio da espécie humana, mas a provável destruição do mecanismo da Evolução. O nosso orgulho histórico abortaria no pior niilismo ontológico imaginável.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado em 3 de Agosto de 2019. “Rumo a Vénus”, Diário de Notícias, p. 25.