RUMAR NO FRÁGIL ESPLENDOR

No último fim-de-semana, eu e mais três amigos de sempre, resolvemos agarrar nas mochilas e partir pela estrada fora na realização de uma ideia longamente adiada. Nos velhos tempos em que éramos novos, preferíamos subir às montanhas, escalar pelas paredes de granito e calcário, caminhar pelos mantos de neve no alto da Estrela, vaguear pelos Picos de Europa, nas Astúrias, respirar com dificuldade nos cimos do Atlas marroquino. Mas aquilo que faltava estava mesmo à porta. Na primeira jornada, partir de Porto Covo e atingir Vila Nova de Mil Fontes. Na segunda, chegar a Almograve. No terceiro dia, descer até Zambujeira do Mar. Foram, ao todo, 74 km de trilhos na Rota dos Pescadores, que tem muito mais para oferecer, para quem possa livremente dispor do tempo para as coisas fundamentais. Sete horas por dia a caminhar, apenas com pequenas pausas. Maravilhados pela diversidade das paisagens. Praias desertas na Ilha do Pessegueiro. Dunas cobrindo falésias de xisto sobre um oceano permanentemente irrequieto, que nos acompanhou com a sua voz de vento e espuma. Sempre. De noite e de dia. Uma costa recortada e rendilhada pela ourivesaria do sal, da água e do tempo. Dezenas de recantos magníficos, sempre com o cinzel da onda modelando a rocha. Mas também o respirar perfumado pela Primavera prematura, rebentando nos arbustos, nas pequenas flores silvestres, ou no esvoaçar das primeiras andorinhas da estação. Quando o trilho investe para o interior, para proteger a duna e a pedra do perigo do pisoteio excessivo, deparamos com pinhais jovens, campos de pastagem, com vacas, cavalos, ovelhas. Mas também, pequenas aparições, como um pequeno bosque, numa linha de água, onde crescem majestosos carvalhos seculares.

Nos dois pequenos hotéis onde pernoitámos, ainda muito longe da azáfama de caminhantes que os próximos meses prometem, a mesma surpresa dos donos da casa por sermos portugueses. Os poucos companheiros de jornada, com os quais nos cruzámos ao longo dos dias, vinham de Munique e Jena. Sabiam ao que vinham, porque, ao contrário de tantos portugueses, estudaram os tesouros da diversidade paisagística portuguesa, e sabem a preciosidade de contrastes que faz a nobreza do Alentejo. Desde Georg Forster, pelo menos, que a literatura de viagem é popular na cultura germânica. Caminhar na natureza é também uma aprendizagem ética. O esforço físico é recompensado pela comunhão com os elementos. Assim como na obra de arte resplandece a singularidade da “aura”, exaltada por Walter Benjamin, na imersão na natureza somos reconduzidos à consciência da nossa pertença a um todo maior, de forças e entes, a cuja harmonia chamamos beleza, ou sublime, quando as forças elementares se erguem desmesuradas na tempestade, ou mergulham em horizontes aparentemente ilimitados. Caminhar na natureza nos tempos da emergência ambiental e climática é também uma aprendizagem política. A natureza tornou-se mortal, sacrificada em holocausto aos falsos ídolos do crescimento. Só nós poderemos ser o antídoto do nosso próprio veneno.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, 29 de Fevereiro de 2020, p. 29.

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