É conhecida a frase de Saint-Just (1767-1794), a propósito de Luís XVI, sobre a impossibilidade de reinar mantendo a inocência. Nenhuma biografia de estadista pode ser abordada como se de uma hagiografia se tratasse. Isso é claramente válido também para o 35.º presidente dos EUA, John F. Kennedy (doravante JFK), assassinado há 60 anos em Dallas. Raros políticos, contudo, podem ser recordados pela grandeza, não pela santidade. É aí que reside o sentimento de perda ainda hoje provocado pela morte brutal de JFK. Essa perda acentua-se pelo estado desastroso em que se encontra hoje a democracia americana, simbolizado na grotesca alternativa presidencial entre Biden e Trump. Ainda mais inquietante, como é revelado num relatório de uma comissão especializada do Congresso sobre A Postura Estratégica dos EUA, é existir um consenso sobre a necessidade de responder aos desafios da perda do poder americano com uma corrida aos armamentos de todos os tipos. Esse documento prova o total esquecimento da doutrina de JFK para uma política internacional de grande potência numa época de armas nucleares. Esse esquecimento atinge o auge quando se afirma ser realista o objetivo de “assegurar a vitória [dos EUA] se a dissuasão falhar”.
O legado da ação governativa de Kennedy é mais amplo do que a sua gestão da difícil crise dos mísseis de Cuba, quando salvou a face dos EUA, sem precipitar o planeta numa guerra nuclear central, como teria sido inevitável se algumas das recomendações dos seus conselheiros tivessem prevalecido. Contudo, as lições que ele retirou dessa crise, seriam hoje preciosas para evitarmos o renascido risco de autoaniquilação. Por outro lado, os méritos de JFK não devem nem podem ser separados dos seus fracassos, pois ele revelou uma enorme capacidade de aprendizagem a partir dos erros. Tal foi o caso no fiasco do ataque à Cuba de Fidel Castro, na Baía dos Porcos, em 1961, uma iniciativa herdada da Administração Eisenhower, mas pela qual Kennedy assumiu, como era devido, inteira responsabilidade.
A favor de JFK, no plano estratégico e das relações internacionais, destaca-se a sua compreensão de que a tese da “retaliação nuclear maciça”, proposta pelo secretário da defesa John Foster Dulles, em 1954, como doutrina militar para enfrentar a URSS, estava definitivamente ultrapassada, pois a sua manutenção conduziria à inevitabilidade de um holocausto atómico. JFK compreendeu muito bem aquilo que Robert McNamara teorizaria, a saber, que a posse de arsenais nucleares da magnitude já existente no início da década de 1960 conduziria a uma “destruição mútua assegurada” (mutual assured destruction). A “guerra-fria” teria de ser governada sob um novo método, sem a perspetiva redutora de um jogo de soma nula (com um vencedor e um vencido) já que todos sairiam derrotados se o recurso ao pesadelo nuclear não pudesse ser evitado. JFK percebeu que num mundo de grandes potências nucleares, a palavra “vitória” estava proibida, por constituir uma alucinação capaz de conduzir ao fim físico da história humana.
É nesse espírito que se deve compreender o enorme significado da assinatura em julho de 1963 do Tratado de Proibição Parcial de Testes Nucleares, precedido no mês anterior pela oficialização do “telefone vermelho” entre Washington e Moscovo. Numa mensagem televisiva ao povo dos EUA, transmitida em 26 de julho de 1963, JFK citou mesmo as palavras de Krushchev acerca da singularidade de uma guerra nuclear:” os sobreviventes teriam inveja dos mortos”. Para os seus inimigos domésticos, “falcões” do complexo-militar-industrial, essa declaração seria considerada como fraqueza, mas para a posteridade a nova política de JFK iria abrir o caminho pacífico de “cooperação com o inimigo”, que salvaria o mundo da hecatombe nuclear, para além de revelar como para o jovem Presidente todo o exercício consciente do poder implicava o conhecimento verdadeiro dos seus limites e efetivas possibilidades.
Outras foram as iniciativas de JFK no sentido de reforçar os mecanismos políticos de cooperação internacional, ampliando o papel das Nações Unidas, ou complementando esse papel com a sugestão de outras estruturas multilaterais de governação. Merece destaque a sua célebre proposta de uma “Declaração de Interdependência”, endereçada à nascente Comunidade Europeia, com o objetivo de constituir uma “Parceria Atlântica”, muito mais ambiciosa do que a estrita finalidade de defesa militar contida na génese e na prática corrente da OTAN. O essencial do seu pensamento está patente no célebre discurso pronunciado na American University, em 10 de junho de 1963, onde JFK recusou o conceito de uma “Pax Americana imposta ao mundo pelas armas americanas”. A sua visão, afirmava o primado da política sobre a força militar, e da cooperação para o bem e segurança comuns sobre o egoísmo estratégico e a vontade hegemónica. As lições de prudência política de JFK são ainda mais válidas e urgentes em 2023 do que o eram em 1963.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 25 de novembro de 2023, página 11.