RAZÃO E PRECONCEITO

Numa notável crónica, Daniel Deusdado demonstrou de modo fundamentado e convincente a insensatez da insistência em construir na Margem Sul qualquer aeroporto complementar ao da Portela (DN, 07 03 2021). Mesmo antes da pandemia, todo este processo – que agora ainda fica mais desfocado com o ressuscitar da falsa opção entre Montijo e Alcochete – estava à partida programado para dar um resultado favorável, independentemente dos fortíssimos factores contrários: as irregularidades no processo de avaliação ambiental (tanto na vertente da protecção da biodiversidade como dos impactos das alterações climáticas); a falta de objectividade do Ministério do Ambiente; as objecções dos representantes dos pilotos sobre os enormes riscos colocados à segurança de aeronaves e passageiros; uma análise custo-benefício irrealista…A vida vai-nos ensinando o limite dos bons fundamentos, face à teimosia de motivos tão poderosos que dispensam a razoabilidade argumentativa.

Se a situação já era retorcida antes da pandemia, mais de um ano após o seu início crescem os sinais de absurda intransigência. Os motivos que levariam à necessidade do aeroporto complementar do Montijo caíram por terra com a pandemia, e existe uma profunda incerteza sobre a viabilidade de nos próximos anos os sectores da aviação e do turismo voltarem ao frenesim exponencial da última década. Já em 2019, a aviação comercial estava ameaçada na UE pelo anunciado declínio dos subsídios aos combustíveis fósseis, em coerência com o Pacto Ecológico Europeu. Em 2019, a redução do transporte aéreo global era já um dever perante o avolumar da emergência climática. Em 2021, essa redução transformou-se numa necessidade básica de gestão, imposta pela dureza bruta dos factos. Agora, as companhias aéreas só sobrevivem com gigantescos apoios dos Estados, sem que isso possa evitar milhares de despedimentos, redução de frotas, e aumento dos prejuízos. Se todos os países têm de enfrentar o desafio de redimensionar o transporte aéreo, Portugal terá ainda de aceitar que o modelo de turismo prevalecente até à pandemia não irá regressar por artes mágicas. Às regras disciplinadoras das viagens aéreas impostas pelo combate ao terrorismo, irão juntar-se novos e exigentes controlos permanentes associados à segurança sanitária. Seria um completo desperdício investir recursos escassos numa nova infraestrutura, que a realidade tornou excedentária antes mesmo de nascer, quando eles são fundamentais para apoiar a reconversão profissional e a revisão do modelo de negócio das áreas estruturalmente atingidas pela crise económica e social, que o futuro próximo irá acentuar com crueza.

Tudo concorreria, no mínimo, para suspender sine die uma obra candidata a ser o próximo elefante branco da irresponsabilidade nacional. Perante o agravar da degradação ambiental e climática do planeta, manter os concelhos da Margem Sul livres dos impactos negativos de tal obra sobre os solos, a biodiversidade, a qualidade do ar, a água subterrânea, e os serviços dos ecossistemas no seu conjunto, seria uma forma de aumentar a resiliência dos territórios, das populações e do país perante os riscos actuais e emergentes. Infelizmente, o governo permanece insensível aos sinais da nova realidade. Como disse Einstein: “É mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito”. Sobretudo, quando o preconceito alimenta uma restrita, mas influente, rede de interesses envolta na retórica do interesse nacional.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 13 de Março de 2021

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