RACHEL CARSON – 60 ANOS DE PRIMAVERA SILENCIOSA

No passado dia 27 de setembro, completaram-se sessenta anos sobre a publicação de Primavera Silenciosa (Silent Spring), um livro que marca uma rutura, ou uma mudança de paradigma, usando com rigor o conceito de Thomas S. Kuhn, na compreensão das questões ambientais. Com efeito, a sua autora, Rachel Carson (1907-1964), contribuiu para uma visão muito mais profunda e holística da crise ecológica, revelando como ela não constituía uma mera falha técnica, a necessitar de conserto e remediação, mas era antes o resultado inevitável das regras essenciais de funcionamento da nossa civilização tecnocientífica.

Um breve Perfil

Rachel Carson (doravante, RC) nasceu em 27 de maio de 1907, em Springdale, Pennsylvannia. Aos 10 anos, a sua clara vocação literária traduziu-se na publicação dos seus 3 primeiros artigos num jornal infantil, St. Nicholas. Esse apetite pela escrita prosseguiu no Pennsylvania College for Women, perto de Pittsburgh, onde os estudos foram sempre acompanhados por uma intensa atividade como jornalista escolar e promotora de iniciativas literárias no campus.

A intenção inicial de RC seria a de fazer um major em literatura inglesa, mas foi conquistada para a biologia por uma jovem professora, Mary Scott Skinker, tendo-se graduado em 1929. Prosseguiu os seus estudos, especializando-se em biologia marinha. De 1936 a 1952, trabalhou no US Fish and Wildlife Service, um importante departamento do governo federal onde, sem surpresa, se tornou responsável pela área das publicações. A escrita, conciliada muitos anos com o trabalho de funcionária pública, acabou por prevalecer. Ao longo dos anos, os seus livros, onde procurava partilhar o seu conhecimento com os seus leitores, ganharam uma projeção tal, com a venda de milhões de exemplares, que a atração de uma carreira de escritora independente acabou por se impor com naturalidade. Os seus três principais sucessos literários foram os seguintes: Under the Sea-Wind (1941); The Sea Around Us (1951); On the Edge of the Sea (1955). Tendo adotado em 1957, Roger Christie, filho de uma sobrinha precocemente falecida, publicaria em 1958 uma pequena obra, destinada a um público mais jovem, e não só: The Sense of Wonder. Das obras acima referidas, esta seria a única que teve tradução em Portugal, por iniciativa do autor, tradutor e editor José Carlos Costa Marques, com o título. Maravilhar-se. Reaproximar a Criança da Natureza (Porto, Campo Aberto, 2012). Em 1960, recebeu o diagnóstico de cancro na mama, o que na altura constituía uma condenação à morte. Nem por isso deixou de se envolver ativamente na conclusão e na defesa da obra que lhe garantiria uma duradoura glória universal.

O livro

O que faz uma bióloga marinha sair da tranquilidade da sua escrita em temas de especialidade e de fascínio, para se embrenhar no tortuoso universo dos negócios da indústria agroquímica, denunciando os impactos para o ambiente e a saúde pública do uso e abuso de pesticidas, em especial do mais comum na altura, o DDT? O motivo foi suscitado pela carta de uma amiga, Olga Owens Huckins, a propósito de um incidente com DDT em Cape Cod, no Massachusetts. Depois de algum trabalho de investigação, apercebendo-se da magnitude da ameaça que desfilava sem contestação à frente de toda a gente, RC decide escrever. O seu editor, Paul Brooks, refere que ela lhe terá escrito o seguinte: “Jamais teria paz comigo própria se permanecesse em silêncio”. Mas a paz moral, conseguida como a publicação de Primavera Silenciosa, foi paga com um preço muito elevado: durante 2 anos, entre 1962, data de publicação do livro, e a sua morte prematura em 1964, RC foi alvo da mais sistemática campanha de difamação a que um cientista jamais foi submetido desde a publicação de The Origin of Species, em 1859, por Charles Darwin.

O livro saiu, primeiro em fascículos, na revista New Yorker, e em livro em setembro de 1962 na editora de Paul Brooks. O mesmo aconteceria, no ano seguinte, com o livro de Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem (1963), que tinha também sido publicado em vários artigos na New Yorker. A reação negativa, organizada pela indústria, não se fez esperar, e envolveu ataques em revistas tão prestigiadas como a Time. Contudo, o livro estava solidamente alicerçado numa vasta investigação empírica e tinha sido validado, nas suas diferentes componentes científicas, por especialistas consultados pela autora. Os ataques começaram cada vez mais a ser dirigidos à pessoa e não ao seu pensamento. Um caso ilustrativo sucedeu num programa televisivo da CBS, em abril de 1963, dedicado ao seu livro. O seu oponente, Robert White-Stevens, um representante da indústria, acabou por cair nos insultos. Imperturbável, Rachel Carson ganhou a discussão pela serenidade e rigor dos seus argumentos. Nesse ano de 1963, seria ainda convidada para efetuar um depoimento no Congresso dos EUA.

O Legado

A obra de RC é considerada, unanimemente, como aquela que inaugurou um “Novo Ambientalismo”. Ela tem atrás de si o contributo de personalidades como Aldo Leopold, o criador da “ética da terra” (Land ethic), ou Charles David Keeling, o primeiro cientista a medir com precisão a concentração do dióxido de carbono na atmosfera (em 1958). O seu exemplo inspirou o trabalho de outros autores que se distinguiram nos anos 60 do século passado: Kenneth Boulding (fundador da economia ecológica, em 1967); Lynn White Jr. (mostrou, também em 1967, como o cristianismo europeu ocidental encorajou a atitude de dominação da natureza que desencadeou a crise ecológica); Anne e Paul Ehrlich, que publicaram em 1968 o alerta demográfico do Population Bomb; Garrett Hardin, e a sua “tragédia dos comuns”, publicada igualmente em 1968. Também sem o livro de RC, dificilmente poderíamos vislumbrar o aparecimento, em 1972, da fundamental obra, Os Limites do Crescimento, coordenada por Donella Meadows, nem talvez os avanços registados na política pública de ambiente dos EUA, com a promulgação da lei-quadro federal para a proteção ambiental (NEPA, 1969) e a criação da Agência de Proteção Ambiental (EPA), em 1970.

De alguma forma, RC procurou mergulhar nas raízes culturais e institucionais da crise ecológica, revelando como ela estava baseada em mecanismos de cegueira coletiva, criados por uma conceção primitiva e arrogante de ciência, e pelos elos tóxicos entre muitos institutos e universidades com os setores industriais. Quando a verdade científica e o interesse lucrativo das empresas entravam em rota de colisão, na maioria das vezes era a primeira que claudicava pelo silêncio. Nesse sentido, escreveu RC:”O chamado ‘controlo da natureza’ é uma frase concebida pela arrogância, nascida na Idade Neanderthal da biologia e da filosofia, quando era suposto que a natureza existia para a exclusiva conveniência do homem (…) A nossa alarmante infelicidade reside no facto de uma ciência tão primitiva se ter armado a si própria com as armas mais modernas e terríveis, e que ao dirigi-las contra os insetos ela as tenha voltado, igualmente, contra a Terra”.

Talvez a força maior que inspirava RC possa ser comparada com o “amor do mundo” (amor mundi) que resume toda a filosofia da sua contemporânea, Hannah Arendt, e que esteve para ser o título da sua obra maior, A Condição Humana (The Human Condition, 1958). Por isso, no início do derradeiro capítulo de Primavera Silenciosa, RC chama a atenção dos leitores para a dimensão escatológica, a um tempo existencial e ontológica, da crise global do ambiente: “Encontramo-nos agora numa encruzilhada, onde duas estradas divergem. Mas ao contrário das estradas do conhecido poema de Robert Frost [The Road not Taken, 1915] elas não igualmente boas. A estrada por onde há muito temos viajado é enganadoramente fácil, uma suave autoestrada na qual progredimos com grande velocidade, mas tendo no seu termo o desastre. A outra bifurcação da estrada, aquela “menos viajada”, oferece a nossa última, a nossa única possibilidade de chegarmos à destinação que assegura a preservação da nossa Terra.” Em 1962, esta encruzilhada despertava ainda um sentimento de mobilização e esperança. Em 2022, esmagados entre a ameaça crescente de uma fulminante guerra atómica, e um lento colapso ambiental, apenas podemos cerrar os dentes e estoicamente aguentar, de olhos bem abertos, a chegada ao fim da autoestrada que nunca tivemos coragem de abandonar.

Viriato Soromenho-Marques

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