QUEM VIER DEPOIS QUE PAGUE A CONTA

O leitor já deve ter reparado que vivemos cada vez mais afastados de um esforço de produção de informação séria. Já nem falo de pensamento crítico, para não pedir demasiado. A propaganda está por todo o lado. O próprio discurso no espaço público adaptou-se à linguagem publicitária, de um brilho platinado sem sólida sustentação. Basta um risco de lâmina curta e percebe-se que o ouro, afinal, é de verniz barato. Terá razões, Portugal, para aplaudir o seu 26.º lugar num ranking de sustentabilidade das Nações Unidas? Só por falta de ambição e de seriedade nos poderíamos congratular tão efusivamente por estarmos na cauda dos países do nosso campeonato de indicadores de desenvolvimento…

A dura realidade é outra. Portugal continua a ser, em muitos aspectos, um país com mentalidade periférica e dirigentes que confirmam essa triste constatação. Apesar do fogo de barragem verde, que se tornou ensurdecedor na campanha eleitoral, a verdade é que muitas decisões de fundo continuam a ir no sentido de sacrificar as condições biofísicas que nos poderiam proteger, como povo, dos perigos que se aproximam com o agravamento das alterações climáticas. Darei três breves exemplos. Apesar do enorme protesto cívico, e do facto das condições colocadas pelo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) estarem longe de cumpridas, tudo indica que 25 milhões de euros dos contribuintes europeus vão ser gastos numa distopia antiga da administração do porto de Setúbal (APSS) que consiste em querer transformar o Estuário do Sado – com vastas áreas distribuídas por duas unidades de conservação da Natureza (RNES e PNA), num porto de água profundas, à custa de dragagens fortemente impactantes. O empreendimento ofende o interesse público, tanto na megalomania das ambições económicas, que ignora as valências portuárias muito superiores de Sines, Lisboa e, futuramente, do Barreiro, como do ponto de vista ambiental. Ofende também directamente as actividades económicas da pesca e do turismo. O segundo exemplo é o do proposto aeroporto auxiliar de Lisboa, reutilizando e alargando as instalações militares do Montijo. Escrevo ainda sem saber o que a Agência Portuguesa do Ambiente vai decidir. Contudo, olhando para o histórico, este governo irá assumir a plena responsabilidade em caso da ocorrência de um futuro e potencial acidente aéreo, por colisão de aves (bird strike) com as turbinas de um qualquer avião de passageiros. Esta preocupação foi aliás reconhecida por Miguel Silveira, presidente da Associação dos Pilotos Portugueses de Linha Aérea. Por último, a exploração de lítio – um componente fundamental na construção de baterias para os automóveis eléctricos – na região do Barroso em Trás-os-Montes. O governo utiliza a bandeira da “transição energética” para esconder alguns factos inegáveis: 1. Duas das minas identificadas estão implementadas numa área classificada como Património Agrícola Mundial pela FAO (uma singularidade no país); 2. Os habitantes têm sido claros na sua recusa do projecto; 3. Na cadeia de valor do lítio, que vai sobretudo salvar a indústria automóvel europeia, Portugal ficará na base da “cadeia alimentar”. Será o país que fornecerá a matéria-prima. Terá o menor rendimento e os maiores custos, como toda a história nos conta acerca da herança de desolação deixada pelas actividades de mineração desde o tempo do Império Romano, pelo menos.

Ninguém sabe se a humanidade sobreviverá nos próximos dois séculos à tormenta da crise global do ambiente. Nenhum país pode sozinho enfrentar o desafio de mitigação das alterações climáticas, pois a descarbonização da economia e da atmosfera é uma tarefa que só pode ter sucesso com cooperação internacional vinculativa. Contudo, a adaptação às alterações climáticas, quer dizer, preservar o solo fértil que nos alimenta, defender a qualidade da água que bebemos (e as suas reservas subterrâneas e de superfície), salvaguardar a diversidade biológica, incluindo esses nichos de vida que são os estuários, tudo isso é política doméstica de primeiro grau. As dragagens no Sado, o novo Aeroporto no Montijo, a exploração do lítio no Barroso são tiros no pé, consentidos por quem nos deveria proteger. São decisões que roubam uma parte de futuro àqueles que ainda não nasceram.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado pelo Jornal de Letras, dia 25 de Setembro de 2019, página 29.

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Rodrigo Pita de Meireles

É bom ler textos como o seu: critico e construtivo, pondo o dedo na ferida em relação a tres projetos sensiveis, muito mal conduzidos pelos sucessivos governantes, aparentemente presos a interesses pariculares e a comportamentos individuais gananciosos e de curto prazo, sem visao estratégica de futuro a médio e longo prazo para esta “nossa pequenina casa comum”. ….
Só falta tocar o problema do mar, “o grande designio nacional” retorico!

joao

Exmº
Em teoria tenho de referir que VEXCª esquece a situação económica do país i.e. a pretexto de uma preservação do ambiente depois de décadas de socialismo de mercado com remendos sociais demo de 10 em 10 anos agora vamos opor-nos aos interesses económicos que nos colonizam . Ahahahahah então não íamos para o socialismo como se fosse o paraíso e todos os que duvidassem eram fascistas ????? então não era a UNIÃO EUROPEIA uma espécie de banco dos pobres porque sem plano marshall recebíamos toneladas d dinheiro e fazíamos o país progredir ???? então agora a exploração de recursos naturais é um erro mas os 721 MIL MILHÕES DE DÍVIDA ao exterior uma boa parte para mportar carros de luxo para a nova aristocracia ir exibir na esplanada do sucesso socialista bem essa parte é uma consequência inevitável ???? Meu caro … agora venderam tudo e ao que julgo saber aos chineses , até o funcionário do MNE o escreveu , à chegada do dragão XI classificado como DDT !!! O ” ministro ” aquilo mais parece um vendedor de automóveis … leu como DONOS DISTO TUDO !!!! mas eu até lia como DDT poderoso herbicida químico que matava tudo no século passado , diclorodifeniltricloroetano… o primeiro pesticida moderno. Neste quadro têm o que pediram e pior com um governo que representa 17 % dos eleitores vão continuar pelo mesmo caminho … da perdição !

rui mota

Claro e pedagógico, como sempre. Um desastre, a gestão do território, à mercê de gestores políticos incompetentes ou, o que é pior, vendidos a interesses alheios à sustentabilidade do país.

Jorge Nogueira

Com todas as regiões cilindradas por interesses puramente economicistas estamos solidários mas, por nele vivermos e conhecermos e amarmos, estamos apreensivos com que se propõem fazer no Barroso. A todas as vozes públicas com notoriedade, os nossos agredecimentos