Estamos a viver, no que concerne ao futuro da UE, um daqueles momentos em que não só poucos são os dirigentes políticos capazes de aguentar a pressão, como começam a faltar os comentadores que cumpram o seu dever de lucidez, por respeito por si mesmos e pelos seus leitores. As semanas passam sem nenhuma mudança efectiva ocorrer, contudo, abundam as loas à Chanceler Merkel. A mais bizarra de todas veio de Timothy Gordon Ash (The Guardian, 6 de Abril), que trocou a análise pelo peditório, designando Merkel como alguém combinando “a cabeça de uma cientista com o coração de uma filha de pastor”. Como é possível baralhar ciência e religião na antecipação psicológica da conduta de uma estadista, como se Hobbes ou Max Weber nunca nos tivessem ensinado nada? Como pode alguém que conheça a última década de história europeia esperar alguma mudança vinda da espontânea iniciativa de Merkel? Eu sei que não há nem na Alemanha, nem no resto da Europa, nenhum líder político com uma quarta parte da experiência da Chanceler que exerce o poder desde 2005, numa época que tem sido tudo menos tranquila. Mas a questão não é a de perguntar ao espelho mágico se há alguém melhor do que Merkel na cena europeia. A questão é a de saber se Merkel será capaz de ser a líder que a Europa precisa para sobreviver numa tempestade de dificuldades e tensões crescentes, à medida que a crise económica e social se adensar, durante e depois da vaga pandémica.
A minha tese é a de que Merkel nunca ousará as reformas que a Europa precisa se não for empurrada nesse sentido, pelos países da zona euro que mais prejudicados estão com a continuação de uma união monetária assimétrica, que favorece alguns países, com Berlim à cabeça, em detrimento de todos os outros. O saudoso sociólogo alemão, Ulrich Beck (1944-2015) dedicou ao estilo político de Merkel um ensaio com o significativo título de A Europa Alemã (2012). Beck cunhou a expressão “Merkiavelli” (combinando os nomes de Merkel e Maquiavel), que definiu como sendo o uso da “hesitação como táctica de domesticação (Zähmungstaktik)”. Querem um exemplo? O recente entusiasmo com os “eurobonds”, de Lisboa a Paris, amansou completamente com a intervenção de Merkel no Conselho Europeu de 23 de Abril. Contudo, nenhuma decisão firme foi tomada. Vai ser invocado o artigo 122.º do TEFU, de má memória (foi a partir dele que se preparou o resgate da Grécia em 2010). Mas isso é apenas a repetição do que escrevi, há uma década atrás, também sobre os “eurobonds”: “Em 2011 a questão central será a do regresso imperioso das obrigações de dívida pública europeia (eurobonds). O frágil mecanismo imposto por Berlim [o lançamento do MEE] no último Conselho Europeu [de 16-17 Dezembro de 2010] será impotente para as dificuldades que 2011 tornará evidentes.” (DN, 3 Janeiro 2011, p. 3). Merkel mudará apenas quando perceber que o risco de fragmentação europeia for real. Mas para isso é preciso coragem e unidade. Capital político muito escasso na liderança dos países descontentes com esta “Europa alemã”. A fraqueza jamais demoverá Berlim.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado na edição do Diário de Notícias, dia 2 de Maio de 2020, p. 24.