QUE FAZER COM ESTA ESPADA?

Há uma notável correspondência de 1776, entre o marquês de Pombal e o conde de Lippe (ver Fernando Dores Costa, Insubmissão, ICS, 2010, 343-351), que ajuda a perceber os recorrentes obstáculos que qualquer mudança profunda nas FFAA em Portugal enfrentará. O conde alemão Schaumburg-Lippe, figura reinante do seu principado na Baixa-Saxónia e comandante militar ao serviço de Londres, tinha chefiado o exército anglo-luso de 15 000 homens, que em 1762, com a ajuda da resistência popular, desfizera um exército franco-espanhol de 40 000 efetivos. Em 1776, com a ameaça espanhola de novo à espreita, Pombal regressava a Lippe para um novo milagre. Com polidez aristocrática, de Lippe não deixa de lamentar os motivos da falta de empenho nacional nas reformas por ele lançadas. Em 1776, como em 2024, o país carece da visão político-social, larga e estratégica, que Lippe considerava ser fundamental.

As palavras proferidas recentemente por altas chefias militares a favor do regresso ao Serviço Militar Obrigatório (SMO) não têm densidade argumentativa. Falar da “ameaça russa” ou do “desemprego jovem” para justificar essa escolha não exibe um pensamento, mas um reflexo de Pavlov, mimetizando os disparatados estados de alma, sem espessura, que hoje governam a UE. Aliás, uma UE cada vez mais parecida com a anomia do Sacro-Império Romano Germânico, só que desta vez com delegação em Bruxelas e sede em Washington, e não na Viena imperial. A mesma superficialidade que anima, agora de ardor bélico, até homens com idade mais do que madura, corresponde ao apático conformismo reinante nas quase duas décadas que antecederam a destruição formal do SMO em 2004. Certamente, muitos dos que agora apelam às armas, foram os mesmos que aceitaram a tendência geral de profissionalização — acompanhada mesmo de privatização e mercenarização de tarefas antes atribuídas às FFAA – que varreu o Ocidente. Para os EUA e a OTAN, os conflitos em perspetiva, após a implosão da URSS (assumida como uma “derrota” da Rússia), seja a punição da Sérvia, a invasão do Iraque, ou o dinamitar da Líbia, eram uma espécie de expedições contra líderes tribais, fazendo lembrar as campanhas coloniais, em que alguns países europeus, incluindo Portugal, se envolveram antes do desencadear da I Guerra Mundial.

Nos anos 80, apoiei totalmente a lucidez esclarecida do general Pedro Pezarat Correia, na sua obra de 1988, Centuriões ou Pretorianos? O velho SMO tinha numerosos defeitos e anacronismos, mas a sua abolição não melhorou nenhum dos aspetos que afetavam negativamente a instituição militar, antes os agravou a todos. Pezarat Correia republicou há dias, no blog A Viagem dos Argonautas, um texto de 2018, de leitura obrigatória, pois constitui uma autêntica metodologia para analisar a questão das FFAA e do SMO com seriedade e inteligência. Outros militares, como Carlos Matos Gomes ou Jorge Ferreira, têm oferecido outras opiniões pertinentes. O debate sobre o SMO exige repensar as FFAA no seu conjunto. Será o novo governo capaz de promover essa discussão? E as Universidades? Ou a comunicação social? Onde reside o nosso interesse nacional? Será útil a Portugal juntar-se aos que querem incendiar o que já está a arder? Como é que as FFAA podem contribuir para enfrentar desafios não bélicos, como os da vertiginosa degradação ambiental, que vão lesar pessoas, fazenda e território? Seremos capazes de estudar, pensar e debater, antes de definir estratégias comprometedoras do nosso futuro?

Viriato Soromenho-Marques

Soromenho-Marques, Diário de Notícias, 6 de abril de 2024, página 10.

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