O pico anual da concentração atmosférica de dióxido de carbono é atingido em Maio. Na breve análise retrospectiva da odisseia do Jornal de Letras nestas quatro décadas de aceleração vertiginosa da crise ambiental e climática, iremos usar esse indicador, conjugado com o valor global da população humana, como métrica de referência. Como ponto de partida: em Maio de 2019 a concentração de CO2 atingiu o valor de 415 ppmv, e a população mundial no início de 2020 registou 7,7 mil milhões de almas.
Em Maio de 1981, dois meses depois de José Carlos Vasconcelos, ter colocado o seu projecto de jornal cultural debaixo do Sol, a concentração de CO2 atingiu 343 ppmv e a população mundial era de 4,5 mil milhões. Em matéria de ambiente, tanto em Portugal como no mundo, vivia-se um período de declínio, depois do entusiasmo registado entre 1962, com o livro de Rachel Carson Primavera Silenciosa, e o início da crise petrolífera de 1973. Esse período de recuo da agenda ambiental – que terminaria com a entrada dos Die Grünen no Parlamento alemão em 1983 – marcado pelas prioridades do combate ao desemprego, à recessão económica, à carestia de combustíveis, não foi, contudo, completamente negativo. A necessidade de aumento da eficiência e conservação energéticas, sentidas particularmente na Europa e no Japão, acabaram por trazer alguns ganhos gratuitos e indirectos para o ambiente. É também neste cenário algo deprimido que, não obstante, é assinada em 1982 a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar.
De 1983 até 1997, data da assinatura do Protocolo de Quioto, vive-se uma nova fase positiva, caracterizada por uma crescente internalização do discurso ambiental na actuação dos governos e das próprias empresas. A legislação ambiental, tanto interna como internacional, sofre avanços vigorosos. No final da década de 80 a totalidade dos países desenvolvidos apresentava ministérios do ambiente e o Painel Intergovernamental para o Clima (IPCC) tinha sido fundado em 1988. Em meados da década de 90, após, a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro (1992), muitas dezenas de Estados desenvolveram planos nacionais de política ambiental, destinados a traduzir ao nível da acção estratégica o carácter horizontal e integrador inerente à política pública de ambiente. Também na esfera internacional, antes e depois do Rio, são dados passos gigantescos. A Convenção de Viena (1985) e o seu Protocolo de Montreal (1987) iniciam o longo combate à depleção da camada de ozono; a Convenção de Basileia (1989) disciplina o movimento transfronteiriço de resíduos perigosos; no Rio assinam-se Convenções para enfrentar os problemas das alterações climáticas, da destruição da biodiversidade, da desertificação. Portugal não escapa a este movimento. A partir de 1987, o país beneficia do grande impulso na política ambiental europeia, tornada numa das vanguardas no esforço de maior integração política do Velho Continente. A Lei-Quadro do Ambiente de 1987 é um marco fundamental de referência.
O Protocolo de Quioto (assinado em 1997, mas que só entrou em vigor em 2005) marcou, de certa forma, o completar agónico deste longo ciclo virtuoso. O traço mais marcante da nova fase de refluxo, da qual ainda não saímos, reside na posição recalcitrante dos Estados Unidos. Mesmo nos últimos anos da administração Clinton-Gore ou no segundo mandato de Obama era possível sentir a nova vaga de demissão crescente na política norte-americana de ambiente. Programas como o da ‘justiça ambiental’, destinado a combater a forte externalização ambiental sobre as comunidades de afro-americanos e hispânicos, foram praticamente liquidados. O Superfund, verba anual votada pelo Congresso para reduzir o passivo ambiental de mais de um século de industrialização foi fortemente reduzido. O rasgar do Protocolo de Quioto, por George W. Bush, em Março de 2001, encontrou eco no abandono do Acordo de Paris por Donald Trump. Em 2000, o CO2 já acusava 371, 82 ppmv e a população ascendia a 6,1 mil milhões.
O entusiasmo com o fim da guerra-fria revelou-se prematuro. O regresso a uma situação de sistema económico único como o que existira até 1913, de capitalismo planetário (sendo o mais virulento, aquele que na China juntou a liderança do PCC ao financiamento do capital europeu e dos EUA) revelou-se uma tragédia para o ambiente e o clima, incluindo os riscos para a sobrevivência humana no médio e longo prazo. Em vez do fim-da-história de benigno recorte liberal na versão de Francis Fukuyama, tivemos uma vertiginosa intensificação da desigualdade social e da delapidação ambiental. A usura e o lucro avançaram mais depressa do que a democracia e os direitos humanos, corroídos pela venalidade da política e pela brutalidade de intervenções imperiais que destruíram os equilíbrios geopolíticos no Médio Oriente e colocaram milhões entre a morte e o flagelo da fuga para o desconhecido. Entre 2007 e 2010 viveu-se uma espécie de falsa partida. Os primeiros traços de colapso visível das alterações climáticas (ondas de calor de 2003, grandes incêndios florestais, Katrina, o recuo recorde da criosfera no Árctico), unidos aos alertas de Al Gore, à mobilização europeia e à vitória de Obama em 2008, levaram à esperança de que uma mudança favorável ao combate às alterações climáticas poderia ocorrer na COP 15, em Copenhaga, no final de 2009. Contudo, a crise financeira de 2008, que se transmutou no início da fragmentação europeia, atiraram o ambiente e o clima para segundo lugar. Em 2010, o CO2 atingia 393 ppmv, e a população escalava para 6,9 mil milhões. Era o início de uma década perdida, caracterizada pelo aumento global dos eventos extremos, onde se destacam os megaincêndios que desde 2017, em Portugal, até à Austrália, ainda há escassas semanas, varreram o planeta.
Em mais de três das quatro décadas do JL, mesmo antes da existência desta crónica de Ecologia formalizada pelo Director em 1994, dei conta, em ensaios dispersos, desta crítica mudança ontológica, única na história da humanidade. Perante a enormidade dos desafios, a sucessão de derrotas disfarçadas em falsas vitórias, perante a falta de coragem e a volubilidade moral de tanta gente com poder, é impossível manter o entusiasmo e a esperança dos anos 80 e 90. Mas uma coisa não mudou. A determinação de não ficar como mero espectador a ver o incêndio devorar a Roma planetária. Como tantas vezes ouvi a Mário Soares: “Só é vencido quem desiste de lutar”.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras de 11 de Março de 2020, página 40.