QUANDO TESEU SE RENDEU AO MINOTAURO

Apontamentos de Pandemia

À medida que se começam a conhecer as respostas nacionais, europeias e internacionais à pandemia, percebe-se que este tempo de paragem não aparenta ter deixado sinais de mudança efectiva nas elites decisoras. A palavra de ordem parece ser a de recuperar o tempo perdido. Fazer mais do mesmo. Estenograficamente: voltar a encher os céus de aviões poluentes, onde nem sequer a distância social sanitária é respeitada. O mundo pós-pandemia será, tudo o indica, mais desigual, mais assimétrico, mais agressivo para o ambiente e os desamparados do que o anterior. A cegueira da pulsão de morte parece comandar esta nave de loucos em que se transformou o sistema mundial, com gente medonha ou irrelevante ao leme de Estados fundamentais. Se não existir um sopro de revolta da gente comum, e sobretudo dos jovens que partem para um futuro que já lhes foi fisicamente roubado, não será preciso decorrer muito tempo para sofrermos uma nova catástrofe global. Pandémica. Alimentar. Climática. Tecnológica. Talvez de tudo isso. Com o risco enorme de algum dos bonzos eleitos ou não eleitos que nos regem resolverem accionar o “Reset” da deriva bélica.

1. Proximidade e distância

Há qualquer coisa de insuportável na leitura hoje dos grandes modernos. Sejam os renascentistas tardios, como Pico della Miramdola, sejam os clássicos Francis Bacon e Descartes. Ou mais perto de nós, Comte e Marx. Do século XX pouco se recomenda, com algumas excepções de gente fora do tempo e das modas: Spengler, Pessoa, E. Bloch, W. Benjamin, H. Arendt. Depois do estertor sangrento da Modernidade nas duas guerras mundiais, destaca-se como particularmente desagradável o cabotinismo de todos aqueles que pensaram ser a pós-modernidade (já de si, uma expressão tresandando a preguiça) um tempo lúdico, um prazenteiro parque de diversões. Temos de regressar a Montaigne, a Marco Aurélio, a Epitecto, a Séneca para as nossas orações matutinas. Até Nietzsche, “esse vencedor do Deus e do Nada”, parece ainda olhar num espelho da condição humana demasiado tingido pelas ilusões modernas de poderio e desmesura. Melhor esteve Kant, que escondeu o seu cepticismo radical sobre as possibilidades do humano, fazendo o seu amor pela humanidade (que ele confessava ter aprendido com Rousseau) depender da realização um sobre-humano programa ético (nesse sentido, há muito mais “super-homem” na Crítica da Razão Prática de Kant, do que no Assim falava Zaratustra, de Nietzsche).

O que torna uns autores insuportáveis e outros amáveis portadores de consolo é a sua proximidade semântica connosco. Não há qualquer relação disso com o tempo linear. Sinto estarmos muito mais perto de Marco Aurélio do que da multidão dos que propõem uma visão do mundo a partir de um axioma incontestável, seja ele o processo histórico ou a expansão infinita do mercado mundial e da prosperidade. Estamos mais próximos desse imperador-filósofo, que passou a vida a tentar civilizar os bárbaros da bacia do Danúbio, enquanto as suas maiores batalhas se travavam nos abismos da sua alma, em busca de uma vida onde a virtude era medida pelo exercício da moderação e do autodomínio.

2. No planalto do U invertido da História

Emancipação. Progresso sem limites antecipáveis. Religião da Humanidade. Fim da pré-história (reino da necessidade e do destino) substituída pelo advento de uma História feita com conhecimento transparente do futuro (N. Bukhárin, o bolchevique mais próximo de Comte do que Marx, estimava que um dia o futuro dos comportamentos individuais seria tão previsível como a trajectória dos planetas: só não conseguiu prever a bala de Estaline que lhe roubaria a vida). Estas foram as drogas modernas que transformaram assassinos em heróis, dementes em visionários. Esta nossa fase é particularmente nauseante. Estamos reduzidos a uma desordem mundial, governada por uma classe alfa que não dá a cara. Governa pelos seus funcionários, na maioria dos casos, eleitos democraticamente. Uma classe dominante, tão super-rica quanto medíocre. Inculta e desprovida de um resquício de desprendimento ou grandeza. É com esta aristocracia de baixa intensidade que vive da ficção mais pobre e viral, a do dinheiro neoliberal, da moeda que não plasma uma das facetas soberanas do contrato social, mas antes o verga sob o seu peso, como ocorre aos Estados na zona euro. Estabelece o seu domínio através da máquina infernal da dívida, do sequestro de um tempo colectivo de que não é criadora, mas insaciável parasita.

Esta pandemia desvela – até para os mais incrédulos, distraídos ou néscios – a natureza do tempo que nos é dado viver. Durante séculos de imaginação tecnológica, expansão ocidental, escravatura, pilhagem organizada, imperialismo, colonialismo, europeização do mundo crescemos sempre em riqueza material, na proporção directa da degradação do “capital natural” (aquilo que recebemos como dádiva de uma natureza que nos deu berço, ou de um Deus que nos deu o ser). Agora, batemos contra o muro ficcional que nós próprios criámos entre a nossa ilusória autonomia e a Natureza, onde estamos umbilicalmente mergulhados, mas que tratámos como uma alteridade instrumental que poderíamos usar e abusar. A pandemia é o preço que estamos a pagar pela destruição da biodiversidade, por enchermos um mundo ao qual chegámos apenas ontem, com as marcas monótonas e simplificadoras da nossa moderna vontade irrestrita de dominação.

3. A luta pelas políticas públicas

Mesmo a queda vertiginosa, que o braço final do U invertido implica, não deixará de ser um negócio para o omnipresente capitalismo financeiro. Agora é a corrida à vacina milagrosa. Amanhã, quando os incêndios florestais, a destruição do solo arável pelas monoculturas intensivas, e a subida do nível médio do mar, fizerem milhões de refugiados ambientais, também na Europa e nos EUA, lá estarão os vendedores de soluções miraculosas e desesperadas, baseadas em programas de geoengenharia, que tornarão o que está mal ainda em pior.

A realidade ultrapassa os exemplos das vulgatas de marxismo. Na verdade, os marxistas foram esquecendo a luta de classes, mas as classes dominantes não. O nosso simpático governo, apesar da retórica pró-ambiental, não parece querer recuar um milímetro de nenhum dos projectos em marcha: desde a agricultura intensiva que vai acelerar a desertificação do Alentejo e Algarve, ao aeroporto do Montijo, ao lítio em Trás-os-Montes. Ao contrário das pessoas comuns, que vivem do salário e do trabalho, os donos do jogo não têm que escrever manifestos, artigos de jornais, nem fazer manifestações. Já estão dentro dos governos, como o PM parece ter aprendido com o episódio do novo subsídio aos destroços do BES. A Europa, mesmo que ainda não seja desta vez que o euro imploda, vai sair mais desigual. Metade das ajudas de Estado consentidas pela Comissão Europeia aos 27 países da UE. vai para empresas alemãs. A aviação civil, que é um dos motores da degradação climática e o vector principal da pandemia, vai voltar a sulcar os céus sem restrições…

4. O Mistério da rendição de Teseu

Desde os Gregos que a esperança de um dia a humanidade se poder libertar de um destino que a esmagava, e que não compreendia por ter uma origem externa, está associada ao melhor e mais heróico da odisseia da nossa espécie. Hoje, estamos entregues a um destino ainda mais cruel, pois tem no final da sua estrada um risco existencial e ontológico sem paralelo na memória humana. A grande diferença é que esse novo fatalismo é da nossa inteira lavra e sabemos bem tanto como aqui chegámos, como também conhecemos as rotas que nos poderiam salvar. Hoje, não precisamos de um coro grego para nos avisar da tragédia de que somos os criadores. Suprema vergonha, esta de Teseu, que podendo matar o Minotauro e ganhar a liberdade para si e para os seus, prefere regressar ao altar sacrificial do monstro, deixando-se devorar por ele. Será que isso acontece – oxalá esta hipótese não se revele amargamente verdadeira – porque Teseu e o Minotauro sejam, afinal, apenas duas faces da mesma criatura, embriagada num perigoso jogo pulsional consigo mesma, que só pode terminar em total aniquilação?

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, na edição de 3 de Junho de 2020, página 27

Subscribe
Notify of
guest
1 Comment
Oldest
Newest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
Paulo Rodrigues

O “nosso simpático governo”, afinal, é tão ordoliberal como o governo paf, que antecedeu a geringonça.
Acima de tudo, é preciso alimentar o mito “mulheres e vinho”.
João Soares do PS, fez isso mesmo no telejornal de 7/junho/2020.
Numa rubrica de comentário político, Soares representou uma rábula com um partenaire do PSD, Poiares Maduro.
Supostamente representante da esquerda, Soares entregou-se a um exercício patético de “reconhecimento de erros” no passado, esfoçando-se por fazer passar a ideia que os erros foram de vários partidos, quando muitos Portugueses (e não só os distraídos) continuam a achar que a culpa é de Sócrates e de seus comparsas.
Enquanto falava, trocava olhares de soslaio com o colega, que devolvia um sorriso misto de escárnio e de cumplicidade.
Soares, em vez de apontar os 25 biliões de euros que o estado Português derreteu com os bancos, ou os 50 biliões de euros que saíram do país para paraísos fiscais, ou a finança casino dos credit default swap, prefere “regurgitar” a tanga “mulheres e vinho”.
Nada sobre a perda de soberania do estado Português, que permitia antes de Maastricht controlar o sistema financeiro e que agora, tornou o estado Português refém desse mesmo sistema financeiro.
Maduro agradeceu tanta generosidade da esquerda soft (garantia da subsistência do regime) e continuou com outras tangas do mesmo calibre.