PARA ONDE OLHA O ANJO DA HISTÓRIA?

Um dos paradoxos do nosso tempo é a contradição entre a acumulação de desafios com impacto global, actual ou futurível, e a ausência ou ingenuidade das meditações acerca do seu diagnóstico e dos meios de os enfrentar. Uma das perdas irreparáveis causadas pelo nazismo foi o desaparecimento da derradeira linhagem de pensadores europeus – grande parte deles judeus completamente integrados na cultura e cidadania germânicas – que se concentrava na construção de “visões do mundo” (Weltanschauungen), e que quando olhava para o futuro, pensava-o a partir de filosofias integrativas da história. Hoje temos especialistas em desafios titânicos, com risco ontológico planetário, como sejam a aceleração da crise ambiental e climática; a ameaça de grandes catástrofes com raiz nas novas tecnologias, como as nanotecnologias e as biotecnologias; o perigo de nos submetermos à ditadura digital de um sistema unificado de inteligência artificial; ou, ainda, de tropeçarmos no arsenal das armas de destruição maciça, porque elegemos ou consentirmos políticos iliteratos e moralmente grotescos para decidir sobre o seu uso. Mas faltava-nos a capacidade de pensar e dar sentido a tudo isso em conjunto.

Uma das vítimas do nazismo foi Walter Benjamin (1892-1940). Um genial representante da perdida originalidade do pensamento judaico de língua alemã, morto nos Pirinéus, no caminho interrompido para o exílio, para onde foram tantos dos seus contemporâneos. Numa vintena de apontamentos sobre o conceito de história, publicados postumamente, Benjamin esboça uma tentativa de pensar a história como um todo. O momento mais alto é atingido no seu fragmento 9, onde o pensador comenta um quadro de Paul Klee, que o próprio Benjamin adquirira em 1921, intitulado, “O Novo Anjo” (Angelus Novus). Numa reflexão onde se combina a forte influência dos estudos sobre misticismo hebraico do seu amigo Gershom Scholem (1897-1982) com o marxismo de recorte messiânico e utópico partilhado com Ernst Bloch (1885-1977), Benjamin simboliza nessa figura angélica a própria história. O anjo da história é arrastado pelo vento do progresso, que semeia no seu rasto um mar de ruínas. Para Benjamin, o anjo tem o rosto voltado para o passado, para esse sulco de destruição deixado pela marcha do progresso histórico. Os seus olhos estão “arregalados”, ansiosos por acudir aos mortos e recompor os fragmentos do que se partiu, numa espécie de reconciliação universal. Todavia, a força impetuosa do progresso impele-o para o futuro. Sempre tive dificuldade, confesso, em aceitar esta interpretação de W. Benjamin. Será que o anjo revela esse semblante de angústia pela impotência perante a justificação do passado? Ou será que esse esgar celestial resulta de um momento anterior ao do próprio quadro, o momento em que o anjo da história vislumbrou o futuro – aquele onde habitam todos os desafios do nosso presente – e incapaz de suportar a enormidade dessa visão, procurou no passado, não uma justificação, mas um refúgio?

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 18 de Janeiro de 2020, p. 29.

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[…] o passado. Como o anjo da história, que Walter Benjamin julgou perceber num quadro de Paul Klee (meu artigo DN, 18 01 2020), somos obrigados à procura de um sentido – a partir da leitura das ruínas, sofrimentos, […]

[…] like the angel of history, whom Walter Benjamin believed he’d seen in a painting by Paul Klee (see my article in DN, 18-01-2020), we’re obliged to search for a meaning – through the interpretations of the ruins, sufferings, […]