O Príncipe na Ilha da Páscoa

Quando analisamos as mudanças no sistema partidário seria prudente procurarmos os padrões e não inovações, mais aparentes do que reais. António Costa (AC) é claramente o político luso que nas últimas décadas mais estritamente segue as regras prudenciais expostas por Maquiavel para os governantes que querem conservar o seu lugar. O seu discurso tem a planura do campo táctico, onde é o mestre incomparável. Não tem rugosidades utópicas nem tabus ideológicos. É um pragmático em estado puro, pronto a colaborar com toda a gente, à esquerda e à direita, desde que o interesse nacional e a continuidade governativa possam coincidir. Quando construiu a geringonça, nos tempos em que o diabo da austeridade parecia poder regressar para vingar qualquer erro, AC soube mudar o estilo mantendo a substância. A tal ponto que o seu ministro das Finanças foi alcandorado a chefe do Eurogrupo. Hoje, neste intervalo entre a pandemia e a presumível turbulência social que o fim das moratórias – combinado com o eventual regresso das regras europeias do tratado orçamental – tenderá a provocar, AC e o PS resistem, tenazmente, às mudanças no sistema partidário. Mesmo sem grande crescimento eleitoral, o PS poderá ganhar lugares no Parlamento pela erosão que o Chega e a Iniciativa Liberal, irão causar sobre o desmoralizado eleitorado do PSD.

O que enerva o PSD. é o PS fazer precisamente o que ele também praticou quando foi governo. Servir as clientelas habituais. As que, sem perderem o mantra da crítica do Estado, não faltam “ao pré e ao rancho”, à luta pelo seu lugar na mesa do orçamento. Foi assim, vitaminado pelos fundos estruturais, que o PSD de Cavaco Silva chegou a ter 51% dos votos expressos do eleitorado. Dando prova do seu sentido de oportunidade, e da sua inegável tenacidade e resiliência (que qualificam o homem e não a sua política), AC bateu-se sem desânimo pela “bazuca” europeia. Com ela, o governo fica com um extraordinário instrumento para o exercício da governação. A distribuição das verbas do PRR – que o instituto Bruegel acaba de considerar o menos ambientalmente ambicioso doa 14 planos europeus até agora estudados – confirmará lealdades e selará compromissos. A tradição rentista da nossa elite económica esmaga tanto a retórica “verde”, como a fantasia de mercados abertos e flexíveis, que os revivalistas liberais pregam para o seu auditório imaginário.

AC segue, serenamente, os avisados conselhos de Maquiavel, fugindo àquele que é o mais perigoso caminho na política: ousar transformar. Escreve o Florentino: “Porque o introdutor [de “novas ordens”] tem por inimigos todos aqueles que beneficiavam das ordens antigas e por tíbios defensores todos aqueles que beneficiariam das novas…” (O Príncipe, VI, §5, tradução Diogo Pires Aurélio). Mas será que, neste mundo tão pejado de ameaças – desde a perigosa navegação da nau europeia aos impactos brutais da cascata de consequências da crise ambiental e climática – não seria necessário apostar em novos sectores e actores preparando economia e sociedade para enfrentar os inescapáveis desafios das próximas décadas? A resposta seria positiva, se o seu ângulo fosse estratégico e não táctico. A história de como os europeus, chegados à Ilha da Páscoa em 1722, encontraram os restos de uma civilização que se autodestruiu porque acelerou uma economia de devastação ambiental, em vez de mudar de rumo, poderia ser útil. Mas já não cabe neste artigo.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 12 de junho de 2021

Subscribe
Notify of
guest
0 Comments
Inline Feedbacks
View all comments