O HOMO AMNESICUS NÃO APRENDE LIÇÕES

Na edição do JL de 1990, que coincidiu com o Dia Mundial do Ambiente, propus um conceito interpretativo para condensar o meu optimismo em relação à possibilidade das calamidades ligadas aos problemas ambientais poderem ser portadoras de algumas modalidades de aprendizagem. “Pedagogia da catástrofe”, tal era a proposta que formulei há mais de 30 anos (às vezes também uso, como sinónimo, o conceito de “pedagogia da tragédia”). O exemplo que fortalecia a proposta era o recuo significativo à escala global das encomendas de reactores nucleares depois do acidente de Chernobil (1986). Hoje, perante os leitores do JL, devo confessar que me enganei. Na altura não tinha ainda percebido que numa sociedade de capitalismo extractivista como é a nossa só há uma indústria mais poderosa do que a do optimismo malsão, que é a indústria do presentismo compulsivo. O “homo sapiens” é hoje uma relíquia de museu. O tipo antropológico, inovador, empreendedor, predador, que hoje campeia é o “homo amnesicus”. Aquele que transformou o esquecimento na sua suprema liberdade e virtude. No mês em que passam dez anos sobre o maior acidente nuclear da história (Fukuxima, 11 de Março 2011), importa reavaliar a situação do nuclear global. Os factos e as tendências parecem confirmar a veracidade das minhas afirmações.

O átomo quer regressar pintado de verde

Ao longo de décadas os negociantes do nuclear não desistiram. Desde cedo compreenderam que as alterações climáticas iriam tornar-se uma oportunidade a partir do momento em que a situação se tornasse grave. Esse momento já chegou. Bill Gates é apenas a figura mais proeminente das que querem – varrendo para debaixo do tapete todos os problemas insuperáveis do nuclear (em especial, o risco de acidentes e a ausência de uma solução para os resíduos) – transformar a electricidade nuclear em alternativa “sustentável” à electricidade produzida a partir de combustíveis fósseis.

Existem hoje (dados de Março de 2021) 106 reactores nucleares operacionais em 13 dos 27 países da UE (são 442 em todo o mundo). Mesmo de acordo com a World Nuclear Association, o negócio a nível mundial estagnou, mas a esperança de um renascimento é realista. Contudo, na UE a tendência é para o declínio. De acordo com a Comissão Europeia (CE), até 2025 cerca de 40 reactores da UE chegarão ao fim do seu ciclo de vida útil. O problema é que o processo de desmantelamento de um reactor nuclear está carregado de custos e incertezas. A experiência de 105 reactores comerciais que já foram ou estão em “decommissioning” mostra que os custos tendem a ser muito superiores aos da própria construção, num processo que se estende pelas gerações futuras (a CE estima em 30 anos o tempo médio para a desactivação de um reactor). Os custos também são variáveis, baseados em critérios pouco claros. O Reino Unido calcula entre 109 e 250 mil milhões de euros o preço do desmantelamento de 17 reactores nucleares ao longo de 120 anos (!). Já a Alemanha, que depois do acidente de Fukuxima assumiu a sua ruptura com este tipo de energia, guardou 38 mil milhões, também para 17 reactores. O poderoso império energético gaulês (EDF) consegue um preço de saldo: tem 23 mil milhões amealhados para 58 reactores…Em qualquer dos casos, neste momento na UE estão apenas em construção 4 reactores (2 na Eslováquia, 1 em França e outro na Finlândia). E mais 7 planeados (2 para a Roménia, 2 para a Hungria, e mais 3 unidades distribuídas pela Finlândia, República Checa e Bulgária). Ainda é cedo para afirmar que o lóbi do nuclear perdeu a batalha da história. O futuro da energia não deveria passar pela fissão ou fusão de átomos, deixando um rasto ignóbil de contaminação letal por dezenas de milhares de anos, mas sim por domesticar com inteligência a incomensurável e inofensiva energia do vento, do sol, do mar, da geotermia, como já ocorre numa progressão cada vez mais geométrica. Infelizmente, o lóbi do nuclear, ume entidade blindada a qualquer consideração que não seja a do predador bem-sucedido, não perdeu a batalha da política e ainda tem assento em muitos governos. No plano mundial, em particular na Ásia, a situação promete compensar em muito algum terreno perdido: A China tem 16 reactores em construção e mais 39 planeados. A Índia, 6 em construção e 14 planeados. No total global: existem 54 reactores em construção e 97 planeados.

Os reactores Espanha não querem sair de cena

Na reunião dos parlamentos ibéricos ocorrida em Maio de 2017, Ferro Rodrigues, ao contrário do habitual low profile das autoridades ambientais lusas, colocou directamente o problema da segurança nuclear em Espanha, que é também um problema português. O portefólio nuclear de Madrid envolve 7 reactores, que vão atingir o seu fim de ciclo de 40 anos na actual década. Em particular, os dois reactores de Almaraz deveriam ser encerrados, respectivamente, em 2023 e 2024. Contudo, não vai ser assim. O governo de coligação do PSOE-Podemos, decidiu em Agosto de 2020 (contra o que estes partidos tinham prometido durante os seus anos na Oposição), prolongar por mais 4 anos (2027 e 2028) o funcionamento de Almaraz, bem como também do restante parque nuclear do país vizinho (Ascó 1, até 2030; Ascó 2, até 2032; Cofrentes, até 2030; Vandellós e Trillos até 2035).

O que está em causa em Almaraz e nas outras centrais espanholas é o mesmo que aconteceu com os 147 reactores de 13 países que conseguiram prolongar a sua existência para além dos 40 anos de vida considerados seguros. Em particular, com os 75 reactores nos EUA ou os 34 reactores em França que foram autorizados a prolongar a sua vida industrial de 40 para 60 anos. O negócio é duplo. Adiam os gigantescos custos de encerramento. Amealham lucros inesperados (e indevidos). O problema é que os benefícios privados são conseguidos à custa do aumento exponencial dos riscos públicos. A central de Fukuxima foi construída numa zona costeira conhecida pela sua vulnerabilidade a tsunamis, por isso os reactores foram protegidos por um paredão de 5,7 m de altura. Infelizmente, a vaga de 11 de Março de 2011 tinha 14 m, e provocou talvez o mais brutal acidente histórico do género. A justificação dos donos da central foi esta: uma onda de 14 m tinha a probabilidade de ocorrer apenas uma vez em mil anos, e aumentar mais a segurança iria assustar o público! É com gente deste calibre moral que estamos a lidar. Temos o dever de, ao menos, não fazermos figura de tolos….ou de amnésicos.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado dia 24 de Março de 2021, no Jornal de Letras, página 30

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