NA FERIDA MUDEZ DO MUNDO

Há muitas décadas, o Gerês era o cenário preferido para longas deambulações, sem preocupação com fronteiras políticas (muito antes da entrada de Portugal e Espanha na então CEE). Desta vez, as caminhadas foram para perto de Vieira do Minho. Recordo, particularmente, um percurso designado como “trilho dos moinhos do Ave”, entre as aldeias de Lamedo e Agra. Uma paisagem deslumbrante, mas que me inspirou um sentimento de tristeza que não me abandonou em todo o percurso. Natureza e cultura misturam-se organicamente num território sinuoso, carregado de marcas de outras formas de habitar a terra. Duas pontes romanas, inúmeros moinhos de água arruinados, lembrando o tempo em que o “mercado interno” de proximidade era uma questão de vida ou de morte. No coberto vegetal já existem, contudo, os sinais de uma guerra em curso. De um lado, carvalhos, castanheiros, as velhas oliveiras, loureiros, freixos, alguns abetos. Do outro, uma multidão, atrevida e sem cerimónia, de eucaliptos e acácias. No passado, tínhamos poetas vigorosos que cantavam a natureza como símbolo do transcendente e do divino. Agora, na melhor hipótese, temos guias-de-viagem que nos aconselham a visitar os lugares de uma natureza crepuscular, antes que seja demasiado tarde.

As paisagens emudecidas contam-nos a história do desmesurado sonho moderno de emancipação humana, transformado numa arrogante separação entre nós e o resto da natureza, visando a sua submissão aos nossos exclusivos e mesquinhos fins. Desde logo, a ruptura ontológica em que se fundamenta a tecnociência moderna. A separação cartesiana entre a coisa pensante (res cogitans) e a coisa extensa (res extensa) que vai dispensar-nos completamente de qualquer reserva moral no modo como nos comportamentos com a natureza, incluindo os animais. Muitos modernos não foram tão longe como Descartes – recordem-se os textos educativos de Condorcet sobre o valor moral da gentileza para com os animais – na indiferença pelo sofrimento dos animais (considerados máquinas sem consciência), mas o mundo em que vivemos é cartesiano. Quem sobrevoe os campos canadianos, russos ou brasileiros onde se devora a paisagem para extrair areias betuminosas, níquel ou ouro, plantar soja, dizimando florestas milenares e deixando um rasto de terra esventrada e bacias hidrográficas contaminadas, dificilmente deixará de sentir um sobressalto, mesmo que de curta duração. O mesmo se passa na crueldade organizada que preside ao uso de animais para a alimentação humana. A generalização das visitas aos matadouros, mesmo nos países mais desenvolvidos, faria mais pela diminuição dos vários malefícios das dietas carnívoras do que milhares de páginas favoráveis ao vegetarianismo.

A modernidade produziu não apenas modelos de neutralização moral, que excluíram grande parte do mundo, alvo da intervenção humana, da necessidade de consideração e escrutínio éticos, como construiu narrativas que valorizaram epicamente toda a espécie de agressão ecológica. A situação de catástrofe ambiental em que estamos mergulhados hoje até ao pescoço foi justificada pela banda sonora da glorificação do engenho tecnológico e do talento empreendedor. Como nos poderemos surpreender, neste mundo em acelerada simplificação e empobrecimento – passando da biodiversidade às instituições e civilidade individual – por a natureza interromper cada vez mais o seu silêncio para nos fustigar com violentos e estridentes gritos?

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 28 de Agosto de 2021

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