MUDAR A ECONOMIA PARA MERECER O FUTURO

Apesar de censurável, a ideia do PM de pedir a um só autor (o Professor e gestor António Costa Silva) uma obra desta envergadura – levando para o desenho das políticas públicas a síndrome lusa do sebastianismo –, a verdade é que a Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica (VEPRE) de Portugal 2020-2030, para o bem e para o mal, é um oásis de relevância no deserto de trivialidades da política nacional. Só a atribulada conjuntura e a pressa do governo em fazer discutir um documento desta relevância no período estival explicam que o debate público do mesmo não tenha sido mais alargado. Neste artigo irei reforçar alguns aspectos de enquadramento e de princípio que, infelizmente, não se encontram no VEPRE, como, aliás, não causará admiração a ninguém atento ao estado das coisas.

Onde estamos?

A pandemia da COVID-19 é mais um sintoma da crise global do ambiente (de que as alterações climáticas são uma das dimensões mais poderosas) que constitui não só um problema mundial, mas a magna ameaça ontológica à própria existência futura da humanidade, em condições de dignidade. Os últimos 40 anos de globalização económico-financeira neoliberal destruíram de modo parcialmente irreversível, os ecossistemas de suporte biofísico básico em que assenta a civilização humana. A pandemia é um dos sinais do colapso da biodiversidade, do mesmo modo que a desestabilização descontrolada da criosfera, mostra que a emergência climática acelerou a um ponto que obriga a transportar as políticas de adaptação (que dependem de cada país, ao contrário das políticas de mitigação que implicam a cooperação de todos para funcionarem) para o centro da acção governativa

Qualquer política de recuperação realista da coesão social e da vitalidade do tecido económico deve ter em conta que, tanto no plano internacional como no nacional, o grande capital financeiro irá chegar primeiro às decisões e aos recursos, do que as pequenas e médias empresas. Dois exemplos. No plano internacional: em Agosto de 2020, apesar da “economia real” estar de rastos, as bolsas mundiais assinalavam entusiasticamente a concentração da riqueza nos mais ricos dos super-ricos, devido ao facto de serem eles os primeiros a servirem-se das políticas de financiamento monetário da economia, levadas a cabo por todos os bancos centrais, incluindo o BCE. No caso português, o Novo Banco e a TAP não precisaram do VEPRE para terem acesso às algibeiras dos contribuintes. Infelizmente, no estado actual das nossas democracias representativas, os eleitores elegem os deputados, mas o peso do Big Money tem um lugar cativo e prévio às eleições na definição da maioria das políticas.

Sete princípios e seus obstáculos

Nenhuma recuperação poderá ter algum sucesso se ignorar dois obstáculos fundamentais: as consequências implacáveis da crise ambiental e climática em clara aceleração; a luta denodada que os poderosos sectores que vão ser colocados em causa pela descarbonização da economia (na energia, nos transportes, na evasão fiscal organizada, na indústria bélica, na indústria extractiva, na agro-indústria, etc.) vão empreender para que tudo fique na mesma. Trump, com a sua loucura negacionista em relação ao abismo climático para onde caminhamos, é a caricatura extrema da atitude de uma parte poderosa da elite mundial que, a partir dos seus jactos particulares, lamenta a destruição da Amazónia…

Se queremos ir para algum lugar que não termine num deserto, teremos de admitir a necessidade de alguns princípios fundamentais para a alocação dos dinheiros públicos, também na esfera da criação de emprego:

  1. A urgência do apoio social. A pandemia está longe de ter terminado, tal como também a destruição por ela causada no tecido empresarial e social. As assimetrias e as desigualdades actuais serão agravadas a um ponto que levará à revolta social, se não forem mantidas e reforçadas as políticas activas de apoio ao rendimento dos assalariados que fiquem privados de trabalho, assim como de fornecimento de crédito garantido pelo Estado a empresas viáveis, mas carecendo conjunturalmente de liquidez.
  2. O primado das gerações futuras coincide o objectivo da sustentabilidade. O que está em causa é a reconstrução da matriz da economia, nacional e europeia (no âmbito do Pacto Ecológico Europeu), incluindo a transição energética como parte da descarbonização geral da economia. Esses critérios devem ser condição fundamental positiva na selecção para financiamento empresarial face a todas as outras que continuam a perpetuar o modelo da globalização neoliberal baseado no consumo de combustíveis fósseis.
  3. A gestão da procura deve sobrepor-se ao modelo neoliberal da gestão da oferta, que tende a substituir os produtos, deixando intocada a cultura consumista. Por exemplo: mais importante do que a mobilidade eléctrica irrestrita (que implicaria uma utilização insustentável de recursos para substituir integralmente o hiperbólico parque automóvel mundial), importa que a mobilidade seja essencialmente efectuada por transportes públicos, não poluentes, induzindo com isso, políticas de desenho urbano mais racionais.
  4. A primazia da subsidiariedade sobre a dependência externa. No início da crise pandémica, quando o mundo ficou dependente da China para máscaras, ventiladores e outros produtos sanitários, até os mais distraídos perceberam como a lógica gulosa da elite neoliberal – que destruiu maciçamente o emprego na Europa e nos EUA através de deslocalizações empresariais — visa apenas aumentar as margens de lucro, sem olhar aos custos sociais e ambientais. Na reconversão do tecido produtivo temos de afirmar também o princípio da subsidiariedade, fortalecendo a capacidade e autonomia do nosso mercado interno, acabando com o privilégio excessivo concedido ao sector exportador. O princípio da subsidiariedade irá traduzir-se positivamente em todas as áreas, da agricultura, ao turismo, passando pelo sector secundário.
  5. O primado da economia circular sobre o extrativismo. Um dos aspectos mais brutais do Plano desenhado por António Costa Silva é a sua apologia do extrativismo, que em Portugal ocorre sempre à custa dos recursos naturais, sacrificando terras aráveis e a biodiversidade, tutelando o país aos sectores mais insustentáveis do neoliberalismo financeiro. O extrativismo campeia não apenas na ideia de ir rasgar o solo agrícola em Trás-os-Montes em busca de lítio, ou na absurda intenção de ir arrancar crostas de níquel, cobalto e manganês nos fundos marinhos dos Açores, mas também nas culturas agrícolas intensivas no Alentejo, como o olival, financiadas por capital especulativo, com mão-de-obra asiática vivendo em condições desumanas, que deixarão como herança uma maior desertificação de solos já de si muito frágeis.
  6. A recuperação do território e do capital natural (terrestre e marinho). Portugal tem mais de 20% do seu território ocupado por vastas manchas desordenadas de monoculturas florestais, que são o combustível para os maiores incêndios florestais da Europa, e para negócios perversos que deles se alimentam. O país precisa de um novo ordenamento florestal, como parte de uma estratégia de repovoamento do “interior”. Está quase tudo por fazer. Contudo, trata-se de uma área que reclama trabalho intensivo, abrindo-se à criação de novas oportunidades de mercado com diferentes graus de complexidade.
  7. Prioridade às medidas de adaptação à emergência climática. Portugal irá sofrer ainda maiores impactos das alterações climáticas. Os investimentos para proteger o país e os cidadãos da subida do nível médio do mar, dos eventos meteorológicos extremos, do stresse hídrico, das reduções na produção alimentar, vão necessitar da combinação do melhor da capacidade de planeamento político multinível (com as autarquias na primeira linha) com o melhor conhecimento disponibilizado pela comunidade científica nacional e internacional.

Estamos tão habituados a viver numa sociedade onde tudo está ao serviço do mercado, que nos esquecemos de que só sobreviveremos como sociedade civilizada se formos capazes de operar a grande inversão dos valores. Colocar os mercados ao serviço da sociedade. Para isso, é essencial a agilização e o incremento das competências do Estado e da administração, que constituem, ao mesmo tempo, uma finalidade e uma condição de possibilidade. Nunca será demasiado repetir que nos próximos dez anos travaremos em Portugal, na Europa e no mundo a única guerra que não podemos perder: a guerra para merecer o futuro.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras de 9 de Setembro 2020, pp. 25-26.

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Paulo Rodrigues

“É perigoso estarmos certos, quando o governo está errado”
Voltaire