ILUMINAR A NOITE SEM FIM

Há um poema do maior poeta grego contemporâneo, Konstantínos Kaváfis (1863-1933), traduzido para português por Jorge de Sena, anterior a 1911, intitulado “À Espera dos Bárbaros”. Numa interpretação imediata, diria que o tema é o da absoluta necessidade de darmos sentido às nossas vidas, mesmo que esse seja o da espera por uma calamidade que nos vai retirar a liberdade. O pior seria o absurdo da ausência absoluta de uma imagem de futuro que ajude a configurar a nossa persistência nos dias. E, como dizia outro grego ainda mais imortal, Aristóteles, na sua Ética a Nicómaco:O bem que cada um obtém e conserva para si é suficiente para se dar a si próprio por satisfeito; mas o bem que um povo e os Estados obtêm e conservam é mais belo e mais próximo do que é divino. A nossa investigação [ética] tem, então, isto em vista, sendo, portanto, em certo sentido, de um âmbito político.” (Liv. I, II, 1094a 18 — 1094b 1-13, tradução de António Caeiro).

Cada um por si na grande deriva

O que Aristóteles nos diz é que só na cidade justa pode existir verdadeiramente ética no seu sentido mais amplo. Ou ainda: entre ética e política, longe de haver um abismo existe uma íntima porosidade, sendo que o primado é sempre o da perspectiva da política, isto é, a do superior bem comum dos povos. É aqui que a natureza desprotegida do nosso tempo se revela com crueza. O sistema internacional de Estados é hoje uma espécie de Armada de caravelas destroçadas pela tempestade. Os barcos ainda flutuam, mas as velas foram rasgadas por ventos ciclónicos. Os comandantes foram escolhidos por entre o fragor da procela, por tripulações tomadas pelo pânico. Nem as democracias escapam ao triunfo da loucura. Comandados por figuras grotescas e patéticas, por vezes, até por trapaceiros e gangsters, os Estados caminham rumo a várias modalidades possíveis de naufrágio final, de onde sobressai a crise global do ambiente e clima. Apesar de há mais de trinta anos existirem lancinantes avisos, eles soam como as profecias de Cassandra. São tão certeiros como impotentes para alterar o curso da realidade.

Que fazer? Num contexto de falhanço do Estado, a ética é obrigada a afastar-se, pelo menos temporariamente, da política vigente. E ninguém pense que a Europa é melhor do que os EUA. O actual quadro institucional da zona euro, em particular o Pacto Orçamental, é tão inimigo da convergência económico-social como da rápida transição energética para uma economia menos dependente de combustíveis fósseis. Na zona euro, o futuro não se mede por gerações, mas por défices orçamentais anuais. Para os actuais regedores do euro, pior do que o colapso ontológico das alterações climáticas parece ser a violação do caminho para o eldorado do défice estrutural de -0,5% do PIB (mesmo que não existam duas opiniões coincidentes sobre o que tal conceito possa representar na realidade…).

Dois exemplos de resistência ética

Com os Estados à deriva, o mercado reina sem rebuço. Contudo, tanto os Estados como o Mercado têm pessoas lá dentro. Pessoas que, perante a anarquia de políticas públicas inexistentes ou maléficas, são obrigadas a pedir a si próprias um suplemento de vigor ético. São acções que se transformam em fogueiras intensas, iluminando a noite e a angústia crescentes.

O primeiro sinal de resistência ética que quero apresentar vem dos mercados. Em 2017, face à ausência de políticas efectivas para combater as alterações climáticas, constituiu-se uma coligação, cada vez maior, de grandes investidores sob o lema Climate Action 100+. Neste momento, já representam 323 grandes investidores que totalizam quase 32 biliões de dólares (qualquer coisa como quase duas vezes o PIB da União Europeia em 2017!). Estes investidores, podem ser grandes fortunas, mas também fundos de pensões (por exemplo, dos funcionários dos Estados da Califórnia e de Nova Iorque), fundos soberanos, fundos ligados a Igrejas, etc. Eles exigem, na sua condição de accionistas, que as grandes empresas em cujo capital participam tenham políticas efectivas para reduzir as emissões de gases de efeito de estufa, com estratégias e metas concretas tanto no seu processo de fabrico, como no posterior consumo dos produtos fabricados. Um bom exemplo da intervenção destes investidores é a luta legal que agora se trava entre a Administração da maior empresa petrolífera do mundo, a Exxon-Mobil – com um currículo assustador em matéria ambiental – e um grupo de accionistas totalizando 1,9 biliões de dólares. Estes investidores querem que na reunião anual da mega-empresa, a realizar no próximo mês de Maio, seja aprovada uma estratégia de minimização das emissões de gases com efeito de estufa. Para evitar que essa proposta seja sequer votada, a Administração está a mobilizar todos os recursos legais e informais ao seu alcance.

Um exemplo de luminosidade ética, ainda mais forte, está a ser dado por uma menina sueca, Greta Thunberg, que desde Agosto de 2018, quando contava apenas 15 anos, iniciou uma greve solitária às aulas todas as sextas-feiras. A sua reivindicação é de uma enorme clareza: é preciso passar das palavras aos actos no combate às alterações climáticas. Em poucos meses, o seu exemplo generalizou-se a quase todos os países europeus, com a Bélgica à cabeça, estando prevista uma primeira greve mundial de estudantes pelo clima no próximo dia 15 de Março. Greta Thunberg tem sido convidada para múltiplas conferências internacionais, onde tem falado sempre com veemente dignidade, tanto nos discursos escritos como nos improvisos, durante as conferências de imprensa. Greta não quer ser estrela pop, nem parece querer deixar de usar a sua enorme e crescente celebridade para servir uma causa que, como ela o repete sempre, é a causa comum do futuro de todos, que se encontra debaixo de severíssima ameaça.

Quando faltam as instituições, sobram as pessoas que iluminam a noite com a sua coragem ética. São elas a nossa derradeira esperança para que um dia, o nosso futuro não seja, de facto, tomado de assalto pelos bárbaros.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 13 de Março de 2019, p. 31.

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Jose Bandarra

Tal como Greta Tumberg, é tempo do Viriato Soromenho Marques, ser ouvido e seguido na sua extraordinaria dimensão cientifica e filosófica. É tempo do Estado Português lhe reconhecer a competencia e lucidez necessárias, inerentes à sua comprovada e fundamentada intervenção em matéria de ambiente que o conduza a um lugar de destaque na representação do nosso país nos foruns internacionais.

Uma política que pretende apenas castigar os consumidores, com maiores cargas de impostos, apenas reage à questão climática mas não age produtivamente. Se continuar a agir desta maneira não será eficiente, porque não se torna digna de credibilidade. Os políticos não dão o exemplo e muitos movimentos pró e contra não são coerentes porque por trás deles se encontram ideologias unilaterais e de poder.
De facto, o mais eficiente seria levar investidores potentes e accionistas a investir em projectos e tecnologias de defesa do ambiente. O exemplo arrastaria as massas!

Maria Cardiso

Uma luz ao fundo do túnel. Excelente informação, como sempre.

Manuel bernarda

Era útil a juventude portuguesa iniciar um movimento semelhante pelo combate à corrupção am Portugal.Aqui também uma classe de senhores crescidos compromete e vão continuar a comprometer o futuro dos jovens!

Fonseca-Statter

É tão lindo, o «Capitalismo Verde»…