DISTOPIA, SOLASTALGIA E CATARSE

O nosso tempo não é percorrido por qualquer genuína pulsão utópica. Ainda menos podemos designar este período como pós-utópico. A nossa habitação temporal é distópica. As fantasias marcianas de Elon Musk e de outros industriais da ilusão são mais do mesmo. São variações da utopia que conquistou – a ferro e fogo, mas também com o suborno de promessas irrealizáveis – o Planeta, e que só terminará quando este ficar seco como um limão espremido. Quando uma utopia se realiza até ao limite, cai a máscara. O rosto que sobra, horrendo, está `a vista de todos. O motor da civilização é uma economia que confunde predação com produção, baseada numa crença de feiticeiros, a de que é possível ter um crescimento económico infinito – o que significa a vitória da entropia sobre a complexidade –, numa Terra que tem limites cada vez mais rigorosamente conhecidos. Não admira que sejam cada vez mais numerosas as perturbações psíquicas causadas pela crise global do ambiente e clima. Para além da revolta moral, sensata e legítima, que motiva a acção colectiva, temos fenómenos de angústia e desesperança, podendo ganhar contornos depressivos, conduzindo no limite ao risco de suicídio. Conceitos como ecocídio, ecoansiedade, ecoparalísia, amnésia ambiental geracional, entre outros, são estudados em cruzamento disciplinar pelas ciências da Terra, psicologia e psiquiatria.

O filósofo australiano Glenn Albrecht tem investigado nas últimas duas décadas estes fenómenos, em particular aquilo que ele cunhou como solastalgia (1). Este novo termo foi formado a partir da junção de dois substantivos das línguas clássicas do Ocidente: solacium (que em latim significa consolo) + algos (que em grego antigo significa dor). Este conceito procura expressar a dor psicológica, mais ou menos profunda, causada pela perda das características que davam valor a um território que considerávamos a nossa terra natal. A solastalgia distingue-se da nostalgia, pois esta última é uma saudade, eventualmente dolorosa, por um território afastado no espaço (o emigrante que anseia regressar à sua terra), ou no tempo (o impossível regresso à pátria da nossa infância). Na solastalgia o sofrimento resulta da perda do que dava valor a um chão onde ainda se permanece, mas que perdeu a sua alma, pois foi desfigurado pela avassaladora destruição ambiental e/ou climática. Os sintomas são particularmente visíveis em populações indígenas que viram as suas florestas ser dizimadas, por exemplo, pela desflorestação e os seus campos de cultivo substituídos por pastagens, ou explorações mineiras (2). Com o agravamento dos impactos ambientais e a escalada da emergência climática, cada vez mais lugares e populações, em todo o mundo, entram no imenso campo das vítimas desta ferida do espírito. Lembro-me de mais de meio milhão de habitantes do Estado do Oregon fugindo dos incêndios gigantes que varreram o Noroeste dos EUA em Setembro passado, ou dos milhares de vítimas dos incêndios nacionais de 2017, cujo magoado discurso reflecte com bastante rigor a validade deste conceito.

Estamos a viver um período com desafios gigantescos, para o enfrentar dos quais temos carência não só de meios materiais, mas também e prioritariamente de interpretações e narrativas coerentes, capazes de iluminarem os mares não cartografados por onde a história humana ameaça naufragar. O pensamento crítico da ciência (e dos cientistas) que não se vendeu ao império do mercado é fundamental. Contudo, o poder revelador das artes, todas elas, é também indispensável. Hoje gostaria de fazer uma menção, especial e pessoal, ao teatro. Foi com uma grata e agradada surpresa que em Dezembro passado recebi o convite de duas figuras maiores do teatro português, João Lourenço e Vera San Payo de Lemos, para participar num debate com os espectadores da peça de Caryl Churchill, com o título em português de Só Eu Escapei (Escaped Alone, 2016), levada à cena pelo Teatro Aberto. A pandemia arrastaria a concretização deste convite para 23 de Maio, numa das últimas exibições da peça. No debate, que teve a adesão da maioria dos espectadores e que contou com a participação de toda a equipa do Teatro Aberto, visivelmente coesa e motivada, percebi, uma vez mais, a responsabilidade da escrita. Alguns dos textos desta coluna de Ecologia no JL, debatidos pela equipa do Teatro Aberto, terão ajudado a definir as linhas de força que permitiram dar vida ao texto de Caryl Churchill. As actrizes Márcia Breia, Maria Emília Correia, Lídia Franco e Catarina Avelar interpretaram, com intensidade e grandeza, o papel de quatro mulheres maduras que, num jardim transformado no epicentro imóvel da sua narrativa-mundo, combinam as suas estórias pessoais com os sinais de um mundo envolvente marcado por crescentes notícias de perigos que se transformam em catástrofes reais. Cada vez mais frequentes. Cada vez mais intensas.

A grande dramaturgia é portadora sempre dessa combinação de iluminação e alívio de tensões, desse estremecimento de espírito e corpo que vai beber ao efeito de catarse da tragédia clássica, como Aristóteles tão bem o define na sua Poética. A peça Só Eu Escapei pertence a essas obras de arte que nos despertam para aquilo que em latência já pressentíamos, mas sem vontade de o formular na consciência e ainda menos no discurso público. A solastalgia – sentir que nos tornámos sem-abrigo na nossa própria casa – não se confina aos lapões da Noruega, aos indígenas das margens do Amazonas, ou aos pigmeus perseguidos nos Camarões. Ao som de fanfarras narcotizantes e mentiras programadas vamos perdendo o chão que ainda pisamos, porque só há chão se este radicar num mundo com futuro. Não há santuários para uma solastalgia universal crescente. Ninguém sabe se teremos força para romper o cerco que nos esmaga. Uma certeza contudo existe. Se asfixiarmos a arte e os artistas, a guerra para salvar o corpo e a alma da humanidade estará irremediavelmente perdida.

Referências

(1) Glenn Albrecht, (2005). “Solastalgia. A new concept in health and identity”: Philosophy Activism Nature, (3), 41-55.

(2) A solastalgia sofrida por comunidades de lapões na Noruega foi recentemente estudada, com muito mérito, por uma doutoranda do Programa Doutoral em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável (programa conjunto da Universidade de Lisboa e Universidade Nova de Lisboa): Laura Dorsch (2020), Suffering Deadlock in the Artic’s Ecology and Health. The Sámi World.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 30 de Junho de 2021, p. 31.

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