CUIDAR DO MAR

Um Projecto Comunitário para o Barlavento

Habitamos tempos de muito ruído. Abunda em informação difusa o que escasseia em sabedoria. Tempos de polimatia. Neles assistimos, demasiadas vezes, a decisões insensatas, portadoras de consequências negativas para o longo prazo, apoiadas na ilusão arrogante de um conhecimento incapaz de compreender os seus limites e insuficiências. O estado do ambiente global, em particular a complexa situação dos oceanos, reflecte as contradições e insuficiências do nosso modelo científico, baseado numa ruptura, já com dois séculos, entre as “ciências do espírito” e as “ciências da Natureza”. Ou, dito de outro modo, a dicotomia entre o que Wilhelm Dilthey (1833-1911) no século XIX designava como a dicotomia entre as “ciências do espírito” e as “ciências da Natureza”, ou C. P. Snow (1905-1980) caracterizava como o conflito entre “duas culturas”, numa famosa conferência proferida em 1959.

O mar, todavia, nunca deixou de ser um objecto partilhado. Tanto pelos saberes do espírito e da cultura, como pela multidão de ciências naturais especializadas. Surpreendentemente, pelo menos para muitos observadores contemporâneos, foi no interior das ciências sociais e humanas, para usar uma nomenclatura mais hodierna, que surgiram as primeiras grandes interpretações sobre a importância crucial do mar e oceanos para a história universal e para o equilíbrio do próprio ambiente planetário.

O mar foi visto como um elemento fundamental para perceber as grandes tendências da filosofia da história. De Hegel e Ernst Kapp até ao Almirante Castex, muitos são os contributos para compreender o modo como o mar afecta o próprio processo de construção da identidade humana, e, em particular os modelos e formas de civilização. Jules Michelet (1798-1874) foi particularmente longe na antecipação do modo como as ciências deveriam concorrer para o conhecimento mais aprofundado dos mistérios marítimos, levando à consciência segura da sua importância fundamental para a saúde do planeta, mas, simultaneamente, colocando a sílaba tónica na sua fragilidade. Com uma extraordinária capacidade de antecipação da consciência ecológica que, infelizmente, ainda não se encontra nem em todas as chancelarias, nem mesmo em todas as academias, escreve Michelet:

“O mar, que deu origem à vida no globo, será ainda o benfazejo fornecedor de alimento, somente se o homem souber respeitar a ordem que nele reina e se se abster de a perturbar. Ele não deve esquecer que ele tem a sua vida própria e sagrada, as suas funções independentes, para a saúde do planeta. Ele contribui fortemente para essa harmonia, para a conservar, para a sua salubridade. Tudo isso já acontecia, há talvez milhões de séculos, antes do nascimento do homem.” (1).

Sendo o mar um elo fundamental do ecossistema global, Michelet atinge um plano verdadeiramente visionário ao propor uma Convenção Planetária para o Mar, algo que só seria realizado em 1982,com a elaboração da Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar! Escutemos, de novo, o pensador francês:

“É preciso um código comum das nações, aplicável a todos os mares, um código que regularize, não somente as relações do homem com o homem, mas as dos homens com os animais.” (2).

Muito antes das preocupações científicas se terem transformado em políticas públicas, podemos detectar na literatura portuguesa do primeiro quartel do século XX o bom exemplo de Raul Brandão. No seu olhar assistimos a uma vibrante crítica de técnicas brutais de pesca (que continuam a ensombrar a saúde ecológica dos oceanos nesta terceira década do século XXI). A descrição é pungente:

“ (… ) Todos os pescadores de norte a sul se queixam de que o peixe falha. Queixam-se de Caminha a Aveiro, queixam-se os da Nazaré, os de Sesimbra e os de Olhão, que emigram para a América. Porquê? Porque, já o disse, nós só temos um sistema bem organizado — o da destruição. Primeiro os vapores de arrasto revolveram o planalto matando a criação e destruindo os pastos. Vieram logo a seguir as criminosas traineiras, que matam a dinamite, e por último os barcos estrangeiros, que empregam agora o carboneto.”.

Tal como hoje, já em 1923 um observador atento poderia acusar as incapacidades da intervenção dos poderes públicos, ou na produção das leis, ou, existindo estas, na sua implementação inconveniente. Acompanhemos ainda, Raul Brandão:

“Se juntarmos a isto a falta de método e de fiscalização efectiva, os excessos cometidos por todos e as leis e os regulamentos que não se cumprem, é fácil de ver porque falta o peixe e de prever também que dentro de cinquenta anos não haverá uma escama nas fertilíssimas águas portuguesas. Fartem-se enquanto é tempo”. (3)

O agravamento exponencial da situação dos oceanos, com o megafenómeno da poluição por plásticos, o aumento da temperatura média na coluna de água e a acidificação acentuada – estes dois últimos fenómenos provocados pelas alterações climáticas – obrigam-nos a moderar qualquer impulso para transportar para o mar o mesmo modelo extractivista que já destruiu grande parte dos ecossistemas terrestres.

Uma verdadeira economia do mar, começa pelo cuidado na protecção do ecossistema, o mesmo é dizer nas condições biofísicas que garantem a conservação e reprodução dos recursos, em particular biológicos, como é o caso das pescas. Um exemplo positivo da capacidade de iniciativa da sociedade civil encontra-se no excelente trabalho de uma aliança de verdadeiros amigos do mar, formada pela Fundação Oceano Azul, Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve, Município de Silves, Junta de Freguesia de Armação de Pêra e Associação de Pescadores de Armação de Pêra. Durante 3 anos estas instituições organizaram um processo participativo, que ganhou a adesão de mais de 70 entidades, para propor ao Estado a criação do Parque Natural Marinho do Recife do Algarve – Pedra do Valado, como Área Marinha Protegida de Interesse Comunitário do Algarve. Trata-se de uma faixa costeira, entre o Farol da Alfanzina (limite oeste) e a Marina de Albufeira (limite este), abrangendo na totalidade 156 Km2, sendo que apenas 4 km2 (2,6% do total) são de protecção total. O objectivo principal consiste na preservação da riquíssima biodiversidade do recife rochoso de baixa profundidade, fundamental como valor ecológico, mas também como sustento de actividades com forte impacto social e económico, como a pesca comercial, a pesca lúdica e as actividades marítimo-turísticas. Trata-se de uma iniciativa inovadora, e não apenas em Portugal, sob três diferentes ângulos. Primeiro, pela seriedade do trabalho científico de suporte (que levou, por exemplo, à descoberta de 12 novas espécies para a ciência). Segundo, pelo rigor do processo participativo, envolvendo os diferentes actores e interesses em múltiplas sessões de debate visando consensos esclarecidos e construtivos. Terceiro e último, pelo modelo de cogestão proposto, que deverá ser implementado faseadamente. Esperemos, agora, que os poderes públicos estejam à altura do imenso e generoso esforço investido neste projecto para que a sua concretização não se arraste no tempo.

Notas

  1. Jules Michelet, Le Droit de La Mer, in La Mer, Lausanne, Éditions L’Age d’Homme, 1980, pp.182 e 183.
  2. Jules Michelet., La Mer, 183 ss.
  3. Raul Brandão, Os Pescadores Os Pescadores. Lisboa, Editorial Comunicação, 1988. A 1.ª edição data de 1923. Merece destaque, até pela sua anterioridade, o cuidado concedido por Ramalho Ortigão às praias portuguesas: Ramalho Ortigão, As Praias de Portugal. Guia do Banhista e do Viajante, Lisboa, Clássica Editora, 2000.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras de 16 de junho de 2021

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