Em 11 de Dezembro de 2019, a nova Comissão Europeia (CE), presidida por Ursula von der Leyen, fez publicar um ambicioso documento intitulado “The European Green Deal”, que se pode traduzir de modo algo redutor para português como “O Pacto Ecológico Europeu”. O núcleo desse documento consiste na organização de políticas públicas à escala europeia, articuladas e abrangentes, pensadas num tempo longo estratégico, tendo como alvo central o combate às alterações climáticas, essa face mais velozmente disruptiva da crise global do ambiente que marca a nossa época, cada vez mais designada como Antropocénico. Assinalando com isso a evidente realidade de ser hoje a humanidade, para o bem ou para o mal, a força telúrica com maior capacidade transformativa no planeta Terra.
Neste artigo iremos desenhar um breve contexto e identificar algumas das promessas fundamentais da estratégia proposta pela novel Comissão von der Leyen.. No próximo artigo, identificaremos alguns dos principais obstáculos que constituem uma séria ameaça à viabilidade e efectividade da sua implementação
Breve Enquadramento
Não é a primeira vez que a CE coloca o ambiente e as alterações climáticas no centro da política europeia. Em Março de 2007, a Comissão Barroso lançou uma estratégia de Energia e Clima, que visava assegurar uma liderança europeia no processo de transição energética, no âmbito do então Protocolo de Quioto (cujo prazo de vigência expirou em 31 de Dezembro de 2012). Nessa altura, o que estava em causa seria encontrar um substituto ambicioso para esse Protocolo, integrado na Convenção-Quadro das Alterações Climáticas (assinada no Rio, em 1992). A CE trabalhou no sentido de conseguir que na Conferência de Copenhaga (COP15), realizada em Dezembro de 2009, fosse possível dar passos ambiciosos. Contudo, apesar da receptividade da China e da Índia, e dos EUA terem ganho com Obama um presidente que levava a sério o aquecimento global, a verdade é que Copenhaga foi um fiasco. Se juntarmos a isso, o impacto da gigantesca crise financeira e económica global iniciada em 2008, e acentuada com a crise europeia agravada após 2010, não será difícil perceber as razões porque em grande parte a segunda década do terceiro milénio foi uma década perdida para a centralidade da causa ambiental. Na verdade, a única coisa que cresceu a nível mundial nestes anos foram as emissões de gases de estufa, tendo a concentração de dióxido de carbono (CO2) registado em Maio de 2019 o recorde em muitas centenas de milhar de anos, de 415 ppmv (partes por milhão de volume). Ou, dito de outro modo: entre 1988, ano em que foi criado o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), e 2020 foram emitidos para a atmosfera mais gigatoneladas de carbono do que durante o longo período que vai de 1750, no início da Revolução Industrial, até 1988!
Apesar da perda desse momentum anterior a Copenhaga, que se esperava poder consolidar-se e expandir-se depois de 2009, a verdade é que o comportamento da União Europeia, no seu conjunto, foi bastante melhor do que qualquer outro grande parceiro do mundo desenvolvido: entre 1990 e 2018, as emissões baixaram 23% e o PIB, pelo contrário, subiu 61% (mesmo com os anos de estagnação e recuo da crise iniciada em 2008). Acresce ainda que apesar do fracasso de 2009, a UE abraçou metas unilaterais de redução das emissões, mantendo a China e a Índia a bordo do processo climático, como ficou confirmado na Conferência de Durban (2011).
A própria meta da neutralidade carbónica para 2050 foi anunciada ainda pela Comissão Juncker, num documento publicado em 28 de Novembro de 2018 (“Um Planeta Limpo para Todos”). Infelizmente, as reacções negativas dentro da União foram significativas. Mesmo sem isso, a Agência Europeia de Ambiente (EEA) chamou a atenção para o facto de que, apesar de existir essa visionária meta para 2050, as projecções actuais indicavam que, não havendo mudanças estruturais profundas, chegaríamos a 2030 com uma redução de apenas 32% das emissões de GEE, muito abaixo da meta de 40%, que nessa altura reunia o consenso para o final da terceira década deste século.
Uma narrativa mobilizadora
O Pacto Ecológico Europeu não se limita a ampliar a Estratégia Energia/Clima de 2007. No seu texto reflecte-se uma visão muito abrangente, informada, e bem documentada. Parece incluir, sem esquecer nenhum, todos os conceitos sonantes presentes no debate actual sobre a dupla face, ambiental e climática, da mesma crise existencial em que a civilização humana se encontra mergulhada: economia circular, economia azul, transição justa, descarbonização… Percorre todos os sectores da economia, não esquece os aspectos sociais da transição, a saúde pública, a protecção da biodiversidade, o combate a uma economia que mais do que produtiva é predatória, vivendo da extracção de recursos naturais postos à disposição pela natureza, sem pensar nos impactos sistémicos negativos que a sua delapidação irresponsável acarreta para o ecossistema global de interdependências que constitui a nossa comum casa planetária. Recorda que entre 1970 e 2017 a extracção global de matérias-primas triplicou! Não se esquece do absurdo dos volumosos subsídios aos combustíveis fósseis (o mesmo que baixar o preço do tabaco para fumadores que quisessem deixar de fumar…). Aponta para o fim das isenções fiscais ao transporte aéreo e ao transporte marítimo, entre muitas outras medidas.
Mesmo antes de serem implementadas, tantas medidas exigem um esforço hercúleo da CE, e do seu modesto dispositivo técnico e burocrático, muito abaixo do hardware instalado nos governos nacionais, e até nas estruturas de gestão de grandes cidades europeias. Só para Março de 2020, a CE promete: uma Lei do Clima; um Pacto Europeu do Clima (para envolver a sociedade civil), e uma Estratégia Industrial. Para o Verão, novas metas e meios para aumentar a ambição da União Europeia para 2030: reduzir de 50% a 55% as emissões de GEE em relação a 1990. Um aumento de 10 a 15 %, na meta de reduções anteriormente prevista para daqui a 10 anos, como vimos acima.
Grandes promessas podem também tornar-se em grandes desilusões. O que o Pacto Ecológico Europeu promete é uma verdadeira revolução no modelo de civilização, centrado numa metamorfose da economia: uma tarefa de recorte utópico e titânico para uma aposta sem vacilações ao longo dos próximos 25 anos! Para conseguir o que promete a União Europeia tem de se reinventar, e com isso tornar-se – em harmonia com uma sociedade capaz de se mobilizar para enfrentar o perigo – no líder político, pelo exemplo benigno, de um planeta dominado por uma poderosa inércia de destruição. Os perigos e os obstáculos são imensos e poderosos. Será a eles que dedicaremos o próximo ensaio.
Viriato Soromenho-Marques
[ Ler segunda parte OS OBSTÁCULOS QUE ENFRENTA O PACTO ECOLÓGICO EUROPEU ]
Publicado no Jornal de Letras, edição de 29 de Janeiro de 2020, p. 27
[…] última crónica de Ecologia abordei as virtualidades e promessas transformadoras, muito ambiciosas, contidas no Pacto […]