27 DE MARÇO 1961: O DUELO ABERTO DE SALAZAR CONTRA KENNEDY

Nas relações mais do que bisseculares de Portugal com os EUA sobressai uma atitude predominantemente positiva, por vezes, mesmo calorosa. Essa favorável atitude lusa para com os EUA manifestou-se tantos pelos actos como pelas omissões. Portugal foi o 3.º país, após a França e a Holanda, a reconhecer a independência dos EUA. Mesmo antes do aliado inglês ter sido obrigado a reconhecer a derrota em 1783. Durante a Guerra Civil de 1861-1865, Lisboa, ao contrário de Paris e Londres, não reconheceu a legitimidade da Confederação de Richmond. Comparativamente com outros países europeus – a começar pelo nosso vizinho espanhol, que tem na sua memória histórica a humilhação causada pela derrota face aos EUA na guerra de 1898 – o sentimento antiamericano é de muito baixa intensidade. Contudo, exactamente há sessenta anos, em 27 de Março de 1961, as relações entre os dois países atingiram o seu ponto mais baixo. As janelas estilhadas da Embaixada dos EUA na Avenida Duque de Loulé, e as palavras de ordem agressivas de milhares de manifestantes, provavam que nunca a atmosfera entre Lisboa e Washington esteve tão turvada, como nesse momento.

Uma hostilidade funcional

Se quisermos compreender as raízes do que aconteceu há exactamente 60 anos, teremos de recuar ao retrato de Salazar desenhado em Fevereiro de 1943 por George Kennan, um dos mais importantes diplomatas norte-americanos do século XX, a partir do seu posto na Embaixada em Lisboa: “Para ele [Salazar] a vitória da Rússia significa em primeiro lugar uma Espanha vermelha […] A vitória dos EUA, por outro lado, significa o triunfo do materialismo de Wall Street e da imoralidade de Hollywood, para já não falar na ameaça às ilhas do Atlântico”.i A visão de Kennan era manifestamente redutora. Ignorava que personalidades tão próximas de Salazar, como António Ferro, apreciavam os EUA, não podendo antecipar também que no rescaldo da dupla crise da II Guerra Mundial e da eclosão da guerra-fria, o regime português colocaria de lado divergências ideológicas, aproximando-se do sistema de poder construído a nível global pelos EUA. Em 1946, Salazar iria ao limite da simpatia possível em política, reconhecendo que a hegemonia dos EUA era útil à paz mundial: “É quase uma hegemonia plebiscitada, tal a consciência da insegurança e da possibilidade de mergulhar numa catástrofe sem a ajuda da grande nação americana”.ii

A subida ao poder do jovem presidente John F. Kennedy iria agitar profundamente as relações bilaterais. Acentuando orientações que já vinham fazendo o seu caminho na Casa Branca, Kennedy iniciou o seu mandato com a firme resolução de desenvolver uma política africana favorável à descolonização, mesmo com o risco de hostilizar os seus aliados europeus, com um duplo objectivo de longo prazo: a) retirar espaço de manobra aos soviéticos, junto dos movimentos de libertação emergentes em África; b) vincular as novas elites africanas a uma imagem favorável dos EUA, como grande potência fiel aos ideais de liberdade que estiveram na sua génese.iii Foi essa mudança, que desencadeou uma colisão estratégica entre os dois países. Kennedy subestimou o peso que a defesa do império colonial tinha nas elites portuguesas dos principais quadrantes políticos. Desde o choque emocional do Ultimato britânico de 1890, que os republicanos fizeram do Império a sua grande bandeira, competindo com as campanhas militares da monarquia em África. A I República entrara na Flandres para defender África. Salazar manter-se-ia intransigente na prossecução desse ideário que, para ele, mais do que mero interesse, era uma questão de sobrevivência nacional.

O terreno para uma escalada da hostilidade funcional de Lisboa com Washington, em direcção a patamares mais elevados de antiamericanismo seria facilmente criado. A ocasião surgiu com a eclosão dos sangrentos ataques levados a cabo em 15 de Março de 1961, pelos guerrilheiros da UPA no Norte de Angola, comandados do exterior por Holden Roberto. O violento ataque, que custaria a vida a mais de 6 000 pessoas, entre europeus (cerca de 800) e africanos – oriundos de outras regiões de Angola que para eles trabalhavam – foi planeado para coincidir com a discussão em Nova Iorque de uma moção contra o colonialismo português, apresentada pela Libéria, a que os EUA dariam o seu voto. As cenas de extrema violência ocorridas no Congo português, no Quanza Norte e nos Dembos, conheceriam ampla divulgação nacional e internacional. A ligação do ataque com a nova política de Washington era perceptível a olho nu. O primeiro sinal de hostilidade popular ocorreu em 22 de Março, em Angola: uma manifestação enfurecida acabou por lançar o carro do cônsul dos EUA em Luanda para o mar. No dia 27 de Março a hostilidade contra os EUA, que se vinha ampliando na comunicação social, derramou-se para a rua numa intensidade que nem nos mais agudos momentos do Verão quente de 1975 seria replicada. Mais de 20 000 manifestantes, entre os quais muitos dignitários do regime, entoando palavras de ordem patrióticas e contra os EUA dirigiram-se à Avenida Duque de Loulé, onde então estava sediada a representação diplomática dos EUA. Os manifestantes quebraram 47 janelas à pedrada, para além de terem manchado a negro a entrada do edifício.iv

Vitórias de hoje, derrotas de amanhã

A resposta militar de Salazar em Angola só teria lugar em meados de Abril, depois de jugulada a tentativa de derrubar o ditador que lavrava dentro do próprio governo. O chefe da Abrilada – como ficou conhecida a falhada tentativa de pressionar Américo Tomás a destituir Salazar -, o general Botelho Moniz, Ministro da Defesa desde 1958, não fez qualquer esforço de ocultação das suas frequentes entrevistas com o representante dos EUA em Lisboa, o embaixador Elbrick. Paradoxalmente, a violência no Norte de Angola, aumentou o apoio popular ao governo, numa altura em que a fragilidade de Salazar parecia poder antecipar uma viragem dentro do regime, patrocinada, com tem sido norma na história portuguesa, pela acção das Forças Armadas. A remodelação governativa, com Adriano Moreira no Ultramar, com uma agenda de reformas, e Franco Nogueira nos Negócios Estrangeiros, deram um novo impulso a um governo que parecia estar esgotado.

O envio das primeiras tropas metropolitanas, que conheceriam um sucesso decisivo nesse ano de 1961, obrigou os EUA a repensar a sua posição.v A diplomacia lusa não deixaria, por outro lado, de recordar a Washington que o prazo para a concessão de facilidades às Forças Armadas dos EUA nos Açores terminaria no final desse ano. Salazar resolveu mesmo aumentar a parada quando, perante a Assembleia Nacional, reunida extraordinariamente, em 30 de Junho de 1961, desafiou, sem rodeios, a política anticolonial da administração Kennedy: “Os Estados Unidos vêm fazendo em África, embora com intenções diversas, uma política paralela à da Rússia. Mas esta política, que no fundo enfraquece as resistências da Europa e lhes retira os pontos de apoio humanos, estratégicos ou económicos para sua defesa e defesa da própria África, revela-se inconciliável com o que se pretende fazer através do Tratado do Atlântico Norte.”vi

A importância estratégica dos Açores e a necessidade de não criar ondas de choque no seio dos aliados da NATO, onde Lisboa contava com o forte apoio francês, em conjunto com as próprias contradições no interior da administração americana acabaram por levar Washington a recuar na sua posição.vii Em 1963, contudo, o sub-secretário de Estado de Washington, George Ball, depois de duas conversas com Salazar, escreveu-lhe profeticamente: “(…) a nossa previsão é a de que, mesmo sob circunstâncias optimizadas, seguramente não vos restam mais de 10 anos para prepararem os vossos territórios para o acto político da autodeterminação”.viii Foram palavras, como as do coro grego, incapazes de evitar a tragédia.

Viriato Soromenho-Marques



i George Kennan, Relatório sobre Portugal datado de 4 de Fevereiro de 1943, citado por António Telo, Portugal na Segunda Guerra (1941-1945), II volume, Lisboa, Veja, 1991, p. 112.

ii Salazar, “Discurso na inauguração da I Conferência da União Nacional, em 9 de Novembro de 1946”, Discursos, Notas, Relatórios, Teses, Artigos e Entrevistas. Antologia 1909-1953, Lisboa, Editorial Vanguarda, 1954, p. 311.

iii Um bom exemplo de um líder africano com uma cultura política fortemente formada num ambiente norte-americano é a do fundador da FRELIMO: – Silvério Pedro Eugénio Samuel, “Pensamento Político Liberal de Eduardo Chivambo Mondlane”, Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa em 23 de Janeiro de 2004. De acordo com o Embaixador Marcello Mathias, Salazar várias vezes terá afirmado que considerava Kennedy “um garoto”: citado por José Freire Antunes, Kennedy e Salazar. O Leão e a Raposa, Lisboa, Difusão Cultural, 1991, p. 67.

iv Para Rui Ramos foram os êxitos militares de Portugal em Angola, nesse ano de 1961, que explicam a mudança de atitude dos EUA, “ainda no tempo de Kennedy”: Rui Ramos, Outra Opinião. Ensaios de História, Lisboa, O Independente, 2004, p. 73.

v Para Rui Ramos foram os êxitos militares de Portugal em Angola, nesse ano de 1961, que explicam a mudança de atitude dos EUA, “ainda no tempo de Kennedy”: Rui Ramos, Outra Opinião. Ensaios de História, Lisboa, O Independente, 2004, p. 73.

vi Salazar citado por José Freire Antunes, Kennedy e Salazar. O Leão e a Raposa, Lisboa, Difusão Cultural, 1991, p. 254.

vii “Por incrível que possa parecer, o braço-de-ferro acaba por ser vencido pelo pequeno Portugal. Em 1963, o presidente Kennedy muda de política: os EUA deixam de votar contra Portugal nas resoluções da ONU (passaram a abster-se), concordam em discordar, e acabam com o auxílio directo aos movimentos de libertação, o que permite nomeadamente a ascensão do MPLA, em Angola, e lança a FRELIMO para a via da radicalização.”, António Telo, “Portugal e a NATO. Um pequeno poder numa grande aliança”, Política Externa e Política de Defesa do Portugal Democrático, José Medeiros Ferreira (coordenador), Lisboa, Edições Colibri, 2001, p. 114.

viii Citado por José Freire Antunes, Nixon e Caetano. Promessas e Abandono, Lisboa, Difusão Cultural, 1992, p. 53.

Ensaio publicado no Diário de Notícias, dia 27 de Março de 2021, pp. 12 e 13.

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