POR UMA NOVA HABITAÇÃO DA TERRA

O ainda incalculável preço físico, moral e económico da crise global causada pela expansão da pandemia do Covid-19 terá sido em vão se aceitarmos as duas teses que muitos governos começam a enunciar na sua gestão da resposta: 1) esta crise é externa, como se fosse uma calamidade natural sem relação com a acção humana; 2) a vitória sobre esta crise será conseguida quando retomarmos a “normalidade”, fazendo o mesmo que antes e da mesma maneira. Se nos deixarmos embarcar nesta visão cega e febril perderemos o potencial de conhecimento e de regeneração que uma crise enfrentada com os olhos abertos sempre permite.

Há muitas décadas que repetimos ser a crise global do ambiente e do clima o maior desafio existencial que a humanidade criou para si própria, com repercussões estruturais, ontológicas até, para o futuro do Sistema- Terra, que desde há séculos está a ser objecto de um processo de entropia, em função da agenda da Modernidade, fundada no princípio da dominação. Desde que o Adão de Pico della Mirandola (1486) foi entregue, por um Deus cada vez mais distante e meramente contemplativo, à tarefa de se completar a si próprio, pelo uso do seu livre-arbítrio, e que Tommaso Campanella (1623) identificou na aceleração tecnológica a força motriz dos Modernos, que a história da Europa, e hoje de todo o mundo, se transformou numa marcha cada vez mais intensa para a realização da utopia de uma dominação incondicional da humanidade sobre a Natureza. Em 1822, o jovem A. Comte dividia a história em duas idades. Depois da “idade da conquista”, entrávamos na “idade da produção”. A submissão tecnológica e industrial da Natureza (reduzida à homogénea e dócil “substância extensa” de Descartes) seria capaz de dela extrair todas as recompensas que não tínhamos conseguido obter através de milénios de guerra entre os povos para disputar os parcos e incertos excedentes das frugais economias agrícolas.

O triângulo da distopia da dominação

Depois das fantasias do final de século XX, em que tentámos escapar dos riscos da Modernidade através da poção mágica dos vários profetas da “pós-modernidade”, sabemos hoje, em 2020, que continuamos na mesma estrada de Gama, de Copérnico, de Pascal, de Adam Smith, de Condorcet. Para se sair da Modernidade, para se evitar o colapso mortal contra o muro das pandemias (como o Covid-19), que ocorrem pela intrusão humana nos últimos redutos da biodiversidade, para impedir a desordem social e a disrupção política que um processo descontrolado de alterações climáticas acarretará – envolvendo migrações de milhões de refugiados ambientais, com o risco de guerras brutais pela água e pelo solo arável – então teremos de enfrentar uma dura verdade: o meio milénio de esperança utópica na autonomia e na emancipação humanas, degenerou na distopia da dominação. A nossa época é a da utopia realizada por excesso, como pesadelo. A distopia da dominação, com a sua imensa inércia, transformou a economia numa força de niilismo material que ameaça devorar tudo e todos no seu caminho.

Contudo, jamais poderemos sair do niilismo distópico sem percebermos como funcionou o software das promessas utópicas da Modernidade. Ele pode ser descrito pela dinâmica triangular que a seguir se enuncia:

  1. Substituição da ética pela fusão da técnica e ciência, como ficou, especialmente, patente nas obras de Descartes e Bacon. A chave do futuro, desse lugar por realizar, desse u-topos, não se encontra na mudança da natureza humana (como seria o caso da conversão ética patente de modo central nas utopias clássicas, de matriz platónica), mas sim na intensificação da dominação da cultura humana sobre a Natureza.
  2. Crença na transferência do infinito teológico e/ou metafísico para o poder humano sobre o mundo físico (cuja possível extensão ao campo da “biologia” está desde o início presente): progresso, crescimento exponencial (a religião do neoliberalismo!), mobilização, aceleração. Essa mutação radical da utopia moderna funda-se no aprofundamento do conhecimento sistemático dos processos causais inerentes às forças e fenómenos naturais, e na sua replicação técnica para fins humanamente úteis. É o horizonte e as promessas da sociedade tecnocientífica, em que nos encontramos longamente mergulhados, que se encontram enunciados na linguagem dos grandes pensadores de Seiscentos.
  3. Recusa da existência de limites intransponíveis pela tecnociência em aliança com o Estado, o Mercado, ou com ambos. As grandes utopias modernas procuraram ajudar a criar uma espécie de nova humanidade, através da criação de inusitados meios tecnológicos (ao serviço da nova ideologia do cientismo), suscitados pela explosão do potencial científico das sociedades, e pelo dinamismo de mercados económicos totalmente libertos de qualquer espécie de constrangimentos ou mecanismos de moderação. O tema do poderio humano, centrado durante séculos no controle e domesticação da natureza biofísica, conhece hoje uma espécie de recuo em direcção à própria condição humana. Nas suas manifestações mais recentes, o cientismo afirma-se numa radicalidade demencial, como é o caso dos autores transhumanistas, segundo os quais a arquitectura actual da condição humana, fruto da evolução natural, é um obstáculo à continuação ilimitada das aplicações tecnológicas, sendo por isso urgente uma nova engenharia do fenómeno humano! É caso para recordar o lema da Liga Hanseática: navigare necesse, vivere non est necesse

Ao longo dos últimos cinco séculos temos assistido ao intenso desfilar desta aposta ideológica na abertura indeterminada do mundo às modulações e modelações da novel tecnociência. Os entes físicos surgem como mera matéria-prima, amorfa e ilimitadamente robusta, pronta a ser transformada, pela livre decisão de um Demiurgo humano. O infinito deixou de ser um predicado atribuível apenas ao Deus criador do Cristianismo, ou às ideias puras da metafísica antiga, para se transferir para a indefinida e inesgotável capacidade plástica da criatividade humana, armada pelo braço da técnica. Apenas num século, entre 1901 e 2001, a força propulsora da tecnociência fez multiplicar a população humana quatro vezes e a riqueza económica por quarenta vezes. A crise de saúde pública que está a paralisar o mundo, e a tirar a vida a milhares de pessoas, é apenas uma parte menor do preço que a continuação dessa “normalidade” distópica implicaria.

O que propõe o princípio da fragilidade?

A crítica ecologista ou ambientalista da modernidade tem sido mais hábil na análise parcelar do que na proposta de uma cosmovisão capaz de se opor à distopia da dominação. Por exemplo, o próprio conceito de “desenvolvimento sustentável” – que visa sobretudo descrever e caracterizar um processo político, económico e social de transformação e mudança – constitui uma fórmula algo contraditória. Por um lado, através do conceito de “desenvolvimento”, partilha do impulso dinâmico, de progresso ilimitado, dessa matriz de desmesura tecnológica que pretende criticar e superar. Contudo, através da “sustentabilidade”, este conceito abre-se para aquilo que me parece essencial: para sobreviver, em condições de dignidade, a humanidade deve reassumir com humildade o seu lugar no interior do “Sistema-Terra”, o nome que as novas Ciências da Terra dão ao clássico conceito de Natureza. Isso implica uma verdadeira “conversão ecológica”, no sentido franciscano (de S. Francisco e daquele que se encontra patente na Laudato si do Papa Francisco). É isso que designo por princípio da fragilidade: a consciência positiva da vulnerabilidade da condição humana, não como algo a ultrapassar, mas como aceitação da nossa pertença a um todo maior, a uma solidariedade ontológica com o mundo e todas as suas criaturas, humanas e não-humanas, constituindo uma “comunidade de vida”, na expressão de Aldo Leopold (1949). Comunidade que é o derradeiro baluarte protegendo o futuro contra o abismo de destruição para onde o princípio da dominação nos empurra.

Nessa medida, o princípio da fragilidade oferece-nos uma “inversão de todos os valores”, que nos conduz à coragem da reinvenção da política, da ética e da economia – usando a religação à Terra como estrela polar – lançando-nos na tarefa de resgatar o futuro da desintegração em marcha. Esses novos valores, contêm, em simultâneo, a crítica e a proposta:

  1. Pluralismo de fins, recusa de hierarquia vertical. O pluralismo do mundo humano, como diz Hannah Arendt, deriva do facto de apenas existirem homens e não “Homem”. Isso é válido para as narrativas e projectos de vida. A horizontalidade do respeito deve substituir a verticalidade da arrogância. O desenho do futuro é entendido como tendo condições para abrigar múltiplas finalidades em coexistência pacífica, desde que os mínimos requisitos fundamentais da sustentabilidade ambiental sejam devidamente levados em conta.
  • Crítica à desmesura da tecnociência. O que está em causa não é uma atitude ludista de absoluta alergia à técnica, mas a recusa de uma visão acrítica e acéfala dos riscos da sociedade tecnológica, bem como o mal fundado de uma visão, totalmente febril, da capacidade da Natureza suportar as nossas investidas plásticas, sem perigo nem vacilação.
  • Suspeita face ao desempenho dos irmãos gémeos do Estado e do Mercado. Assim como não há fins que mereçam um destaque privilegiado ao ponto de ser legítimo vislumbrar a possibilidade de eliminação de todos os outros, também não há veículos escatológicos de eleição exclusiva. Dito de outro modo: o pluralismo de fins coabita com o pluralismo de sujeitos históricos, modeladores de futuro.
  • Percepção do futuro como abertura a uma pluralidade de possíveis. O tempo é considerado como tal, numa diferença radical em relação à previsibilidade do espaço. O futuro pode apenas ser aberto, e não vislumbrado na previsibilidade de um horizonte cujos contornos se oferecem como disponíveis. A razão calculadora deve reconhecer os seus limites face às incertezas do tempo como indomável objecto de conhecimento e delicada matéria-prima para a acção.
  • A Política deverá ser entendida como cooperação, mesmo e até como cooperação compulsória. É a resposta inevitável a uma concepção “moderna” de política que esteve prestes a sacrificar a espécie humana num holocausto nuclear (que ainda não foi definitivamente excluído como possibilidade histórica). Mais necessária e obrigatória se torna essa cooperação quando estamos confrontados, como humanidade inteira, com as tarefas gigantescas de uma nova forma de habitar o planeta, devastado pela crise ambiental e climática antropogénica, e ameaçados pelos riscos de guerra e violência decorrentes das desigualdades e injustiças crescentes.

A crise pandémica do Covid-19 abre-nos a janela de tarefas tão urgentes como titânicas. Durante décadas tolerámos que o sonambulismo se substituísse à exigência de escutarmos os sinais de perigo e as ameaças que a euforia da dominação colocou entre nós e o futuro. A margem de erro é agora nula. A escolha é entre as dores de um novo parto da civilização ou a imperdoável aceitação do suicídio da própria humanidade.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras Artes e Ideias de 25 de Março de 2020, pp. 1, 6-9.

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