PIROCENO- QUANDO A DESMESURA DO FOGO AMEAÇA PROMETEU

De Hesíodo a Ésquilo, sem esquecer o próprio Platão, passando pelo poeta Shelley, ou o nosso Guerra Junqueiro, o mito do titã Prometeu – amigo dos humanos que lhes ofereceu o fogo roubado aos deuses, pagando com isso um preço de sofrimento eterno – não cessa de inquietar os vários pontos cardiais da cultura ocidental. Entre as alterações climáticas, com os seus incêndios incontroláveis, e a expansão de desertos hostis à vida, ou o risco que nunca esteve tão próximo de concretização de um holocausto nuclear, o tema da ligação entre o fogo, sob todos os seus rostos e em todas as metamorfoses, e o destino histórico da humanidade volta a estar na ordem do dia.


Susana Moreira Marques, Viriato Soromenho-Marques e Stephen Pyne

Tive o prazer de discutir o livro de que trata esta crónica com o seu autor, no Porto, na recente VIII Conferência Internacional de Incêndios Florestais, organizada pela Agência de Gestão Integrada dos Fogos Rurais (AGIF). Trata-se de Stephen J. Pyne, historiador, professor universitário, e experiente bombeiro voluntário com décadas de participação e estudo no combate a cada vez mais violentos incêndios que devastam as florestas de todo o mundo, como o estatuto português de campeões europeus em área ardida, tristemente o confirma. A Conferência do Porto trouxe ao nosso país cerca de 1 500 empresários, bombeiros e académicos relacionados com o a luta contra este flagelo crescente, que nos ameaça o corpo e a fazenda, empobrecendo a diversidade ecológica dos territórios. Contudo, aquilo que o autor norte-americano trouxe como contributo para a Conferência foi um verdadeiro exercício de pensamento, convidando-nos a meditar no enquadramento histórico e cultural dos usos do fogo, e no modo como as tendências futuras apontam para que esse se torne cada vez mais o elemento natural, dos quatro da Física Antiga, com papel mais preponderante no desenhar do futuro da humanidade.

Das muitas ideias que justificam a leitura do livro, existem três que merecem particular destaque. A primeira consiste na reconstrução da tese, introduzida em 2000 no âmbito das Ciências do Sistema-Terra (assunto tantas vezes debatido nestas crónicas), de que os tempos da história e da geologia se fundiram numa nova época designada por Antropoceno. Sobretudo depois da Grande Aceleração, iniciada em 1950, a humanidade tornou-se a maior força transformadora, substantiva e duradouramente, do próprio software do planeta: da biodiversidade à estrutura química da atmosfera, do clima aos ciclos do carbono, azoto e fósforo, passando pelos oceanos, criosfera e litosfera. Stephen Pyne, todavia, propõe uma leitura do Antropoceno a partir da identificação de uma radical mudança das nossas relações essenciais com o fogo, que, desde a pré-história foram determinantes na própria definição da identidade humana, seja físico-anatómica, seja cultural. Na verdade, o fogo natural, manipulado pelos humanos esteve para o Holoceno, o período geológico iniciado após a última glaciação há 11,7 mil amos, como o gelo esteve para o muito mais longo período do Plistoceno (iniciado há 2,5 milhões de anos). É essa mudança que Pyne batiza como Piroceno, uma idade do fogo, agora numa fase particularmente crítica e incandescente.

Em segundo lugar, o Piroceno, a Idade do Fogo que hoje vivemos, resultou de uma enorme e veloz metamorfose. A partir do momento em que, com a Revolução industrial começámos a recorrer maciçamente aos combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás natural, e mais recentemente gás de xisto), ampliámos exponencialmente o nosso poderio, mas também a nossa capacidade de destruição do mundo natural de onde viemos, e de que dependemos, como a crise global e ambiental reiteradamente o prova. Essa metamorfose resultou da exploração intensiva daquilo a que Pyne desiga como fogo industrial. Este alimenta-se da mesma matéria biológica e vegetal do fogo natural. Com uma diferença: o seu combustível não são as florestas vivas, mas as florestas fossilizadas que cresceram sob o Sol de há centenas de milhões anos. Esse fogo pode ser disciplinado, domesticado, respondendo apenas quando chamado para tal. Ele arde escondido nos milhares de milhões de motores que trabalham para o nosso conforto, nas estradas, cidades, fábricas, nos céusSem disso termos consciência, toda a nossa civilização é um fogo permanente que transporta o carbono da litosfera para a atmosfera. Pyne chama a atenção para o facto de que o significado profundo do fogo não é sequer estudado, pois é partido aos pedaços pela fragmentação especializada das ciências e das técnicas: “À medida que o fogo desapareceu dentro dos motores, ele desapareceu da vida intelectual (…) ele tornou-se num objeto sem uma morada académica específica, numa criança adotada circulando entre parentes, alguns mais acolhedores do que outros” (Pyne, 83).

A terceira proposta de leitura abre-se para o repto existencial do nosso futuro. A nossa relação com o fogo é uma síntese da odisseia humana. Passámos de uma relação de colaboração mútua com o “irmão Fogo”, como escreveu São Francisco no Cântico das Criaturas, para um pacto diabólico com ele. Como escreve Pyne: “nós também poderemos perecer no fogo se não controlarmos a sua combustão, isto é, se não nos controlarmos a nós próprios.” O perigo amplia-se enormemente se acrescentarmos o fogo solar descontrolado que aguarda nas bombas de hidrogénio dos arsenais nucleares o seu momento de entrar, e acabar, com a história. Apesar da enorme gravidade de tudo isto, talvez nos encontremos muito perto daquele ponto em que apenas o grito explosivo da realidade (e não o do alerta para a sua ocorrência iminente) será levado a sério. Demasiado tarde, lamentavelmente para defender a possibilidade de futuro.

Stephen Pyne, Piroceno. De Como a Humanidade criou uma Idade do Fogo e o que virá a Seguir, (tradução de Sara Veiga) Zigurate, 2023. PVP 17, 90 €

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 26 de julho de 2023, página 33.

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