PENSAR A GUERRA NUCLEAR: O OUTRO FIM DA HISTÓRIA

Bastaram pouco mais de três décadas, considerando 1989 como o ano de referência, para o regresso em força da possibilidade de uma guerra nuclear. A invasão russa da Ucrânia, e as reacções por ela causadas pelo mundo fora, revelam a profunda ignorância e leviandade daqueles que preconizam a escalada bélica. Por muita simpatia que se tenha pelo povo ucraniano, vítima da agressão de Putin, não se pode deixar passar em silêncio o permanente, repetido e incendiário apelo do presidente Zelensky para que a OTAN encerre o espaço aéreo ucraniano. Este apelo merece total e absoluta rejeição de todos os estadistas de bom-senso, pois significaria ampliar, pelo menos na Europa, dezenas ou centenas de vezes o sofrimento que agora está a ocorrer na Ucrânia.

Aquilo que a introdução de armas de destruição maciça, em especial as armas nucleares, veio produzir no pensamento estratégico no decurso dos quarenta anos decisivos da guerra-fria (1949-1989) foi o desmantelamento da sóbria e racional arquitectura da teoria da guerra pré-industrial e pré-tecnológica, que ficara plasmada com brilho na obra póstuma de Carl von Clausewitz, Da Guerra (Vom Kriege, 1832). Com uma urgência crescente, as novas armas vão forçar um “pensamento do impensável”. As armas nucleares exigiram a produção, nos limites da (des) razão, de um novo conceito de estratégia bélica capaz de conviver com um gigantesco paradoxo: a existência de armas com um poder de destruição potencialmente infinito, acabaria por conduzir ao absurdo de uma guerra sem vitória. Uma guerra que terminaria só com derrotados, mergulhados nos escombros de uma destruição mútua assegurada”.

Vejamos, de seguida, os três tópicos centrais do desmoronamento da lógica da guerra clássica, causado pela intrusão de uma possível híper-guerra nuclear, capaz de aniquilar a humanidade.

1. A volatilização da noção de frente. Num universo de forças finitas, que necessitam de tempo para se deslocarem no espaço ao encontro do inimigo, a possibilidade — permitida pela panóplia das armas nucleares — de mobilização praticamente instantânea (o tempo de chegada aos alvos dos mais longínquos mísseis intercontinentais balísticos, lançados de silos terrestres, é no máximo de 30 minutos) de forças destrutivas capazes de arrasarem várias vezes as áreas urbanas e os alvos militares do Planeta provocaria um pesadelo apocalíptico inimaginável no tempo de Clausewitz. Essa dura realidade, que aliás foi sendo preparada pelo advento da artilharia convencional de longo alcance e pela utilização da aviação para fins militares, obrigou a alterar completamente conceitos clássicos como os de ‘mobilização’, ‘concentração de forças’, edificação de ‘linhas defensivas’, ‘escalada’, etc.

2. A relativização do espaço-tempo estratégicos: Na guerra o espaço-tempo é função da capacidade de mobilização de forças, que, no tempo de Clausewitz e até 1945, eram consideradas necessariamente finitas. Por isso, podemos afirmar que os acontecimentos militares, no universo clausewitziano, ocorrem dentro, ou estão contidos no espaço-tempo. A ‘frente’, por exemplo, era um ponto de atrito entre forças finitas, contido pelo horizonte mais vasto das coordenadas do espaço-tempo da guerra.

No novo quadro nuclear, quando qualquer ponto da Terra pode ser várias vezes varrido, quase em simultâneo, pela devastação atómica, então o que ocorre é uma alteração do espaço-tempo estratégico tão radical como, por analogia com a física, o foi a transição do paradigma newtoniano para o paradigma relativista einsteiniano. O relativismo físico introduziu uma leitura pluralista da concepção de espaço-tempo. As leis consideradas absolutas da física newtoniana não foram abolidas — como também não o foi a guerra convencional onde a doutrina de Clausewitz continua a ser vigente –, mas foram relativizadas, deixaram de ser válidas em todo o universo para passarem a conviver com outros tipos de fenómenos, ‘singularidades’ que as desafiam, que exigem um outro quadro referencial, que se oferece apenas numa representação probabilística da (in) certeza.

A simples possibilidade de uma guerra nuclear central (entre as potências atómicas principais, usando o seu arsenal em plenitude) significa que, doravante, os estrategistas têm de incluir a categoria de implosão do espaço-tempo estratégico como uma hipótese de trabalho para a realização da qual todos os meios materiais já estão efectivamente reunidos. A implosão significaria que as forças mobilizadas por uma guerra nuclear total já não seriam finitas face ao universo de referência, antes o transbordariam. Numa guerra nuclear total, os acontecimentos bélicos não ocorreriam dentro do espaço-tempo. Pelo contrário, o espaço-tempo clausewitziano seria distorcido, contraído e finalmente destruído pelo potencial de caos contido nas quinze ou vinte mil megatoneladas que aguardam pela sua vez nos silos subterrâneos, no ventre dos submarinos, ou no bojo dos bombardeiros estratégicos.

3. O eclipse da categoria de vitória: O culminar da derrocada do mundo clássico de Vom Kriege ocorre com a supressão do centro nevrálgico teleológico da doutrina estratégica, isto é, o conceito reitor de vitória. A paridade nuclear entre os EUA e a URSS, atingida no final da década de 1950, transformou o conceito de vitória num acrónimo absurdo: “destruição mútua assegurada” (mutual assured destruction-MAD). No plano da confrontação central entre as superpotências atómicas o objectivo já não consistia em preparar as condições propícias à vitória no cenário extremo da confrontação aberta e generalizada. Em vez de um plano de guerra vitorioso (a categoria de vitória foi deslocada para os conflitos periféricos convencionais de baixa e média intensidade), o máximo que as grandes potências do mundo bipolar da guerra-fria poderiam almejar seria uma dispendiosa simulação da guerra, uma dissuasão convincente (deterrence) que evitasse a eclosão de um conflito de dimensões estritamente escatológicas: equivalente a um fim realda história humana.

Este brutal despertar do génio maligno do Armagedão, nos campos de batalha da guerra na Ucrânia, tem todos os ingredientes para saltar do nível convencional para o patamar nuclear. Primeiro, seriam os obuses tácticos, lançados sobre o campo de batalha, depois, escalaria para trocas de mísseis de médio alcance, culminando no híper-terror dos mísseis balísticos intercontinentais: o niilismo da vingança bélica na sua expressão máxima. Quando confrontamos a planura das nossas lideranças com a enormidade do desafio de salvar a paz e a continuação da história humana, é difícil não sentir o vacilar da esperança.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 6 de Abril de 2022, página 28.

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