A analogia entre o comportamento viral num organismo hospedeiro e o modo como a humanidade se comporta no Planeta Terra tem sido sugerida por numerosos autores. A hipótese é de natureza hermenêutica, não ontológica. Ou dito de uma outra maneira: ela tem um inegável valor descritivo, o que não se pode confundir com um valor explicativo que seria preciso demonstrar. A virologia estuda o modo como essas micro criaturas se apoderam, e alimentam até à exaustão de um corpo hospedeiro. A atividade virulenta torna-se cada vez mais violenta, animada por uma espécie de “entusiasmo” mortífero, que tudo arrasta na sua pulsão tanatológica, incluindo os próprios vírus.
A desmesura virológica da nossa civilização está omnipresente. Cada vez que entramos num automóvel, ou ligamos um computador, fazemos compras de alimentos e roupas, ou marcamos férias num lugar aprazível e distante, a contabilidade dos impactos ambientais desses gestos, aparentemente inocentes, surpreender-nos-ia. Estamos todos ligados a um metabolismo civilizacional programado não para a sobrevivência e continuidade, mas para a intensificação e a aceleração. Há uma total consistência no poderio tecnológico exorbitante – tanto na guerra como na apropriação extrativista e entrópica da ecologia planetária pela economia. No caso vertente do conflito iniciado na Ucrânia pela invasão russa, e que hoje consiste numa guerra de procuração entre a OTAN, sob comando de Washington, e Moscovo, o principal risco é o da ilusão de controlo. Podemos fantasiar que a carga viral quando extingue a vida do seu hospedeiro, está tão embriagada pelo seu sucesso, que não se “apercebe” da sua autoaniquilação próxima e inevitável. Na verdade, essa ilusão viral parece impregnar a doutrina de guerra da OTAN, de acordo com a qual o fornecimento de mais armas convencionais às forças armadas da Ucrânia poderá levar à derrota da Rússia. Trata-se de um tremendo erro, reflexo de ignorância, desrazão…e, quem sabe, mimetismo viral. Não só esse objetivo está a impedir o mais rápido acesso possível à via diplomática e ao cessar das hostilidades através de tréguas, como está a criar um risco de escalada para um patamar nuclear, ameaçando, além de destruir a Ucrânia, alastrar para uma geografia de vastidão indeterminada. O perigo reside em que Moscovo – como está escrito há décadas na sua doutrina de uso das armas nucleares -, na eventualidade de ficar numa situação desesperada no campo de batalha, devido à eventual supremacia quantitativa e qualitativa das armas ocidentais (ou mesmo se ocorrer a intervenção de exércitos de “voluntários” provenientes de países da OTAN em apoio de Kiev), dificilmente aceitaria uma derrota. Pelo contrário, Moscovo, nessa situação em que o seu estatuto de grande potência e a própria sobrevivência do Estado estejam ameaçados, só por milagres não recorreria – de acordo, sublinho, com a sua doutrina militar vigente – ao uso de armas nucleares táticas, contra concentrações de forças, infraestruturas essenciais, e outros objetivos militares.
Depois de um eventual primeiro uso pelos russos de armas nucleares táticas, caberia à OTAN a penosa decisão política de levar, ou não, o seu apoio à Ucrânia, país fora da Aliança e não coberto legalmente pelo artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte, ao ponto de envolver diretamente as tropas da Aliança (e colocando milhões de civis em risco…) numa guerra que não só seria nuclear, mas se tornaria potencialmente global. Além disso, como tem sido referido por vários analistas militares ocidentais, em matéria de armamento nuclear de teatro, a vantagem russa é esmagadora, não tendo Washington os meios adequados para uma dissuasão convincente, e ainda menos para uma resposta que não faça ascender a violência para um degrau de intensidade insustentável (Johnson, 2016: 76-77; Warden 2018: 55-56). Apostando na projeção de formas muito longe das suas fronteiras, contra adversários muito mais frágeis, os EUA, têm investido sobretudo na sofisticação das armas convencionais no âmbito da chamada Revolution in Military Affairs (Kagan, 2000).
Um estudo sobre as consequências de várias modalidades possíveis de guerra nuclear, tornado público em 15 de agosto de 2022, chamava a atenção para o terrível custo humano causados pelos impactos da guerra no médio e longo prazo sobre a capacidade de produção alimentar mundial. Mesmo uma guerra nuclear regional, entre a Índia e o Paquistão, teria consequências que afectariam praticamente toda a humanidade (Xia, 2022). A invasão da Ucrânia foi um acto de elevado risco tomado pelo Kremlin, que o prolongamento da guerra faz aumentar exponencialmente. Contudo, cabe a Washington a responsabilidade de escolher entre a fúria viral e a moderação racional. Decidir se quer levar a exploração da vulnerabilidade russa até ao ponto em que a tragédia humana desta guerra se poderá expandir e multiplicar de uma forma que, neste momento, apenas podemos imaginar. Mas que será sempre terrível. Apenas falo de Washington, pois o que esta guerra provou foi que não só não existe um mínimo de governação europeia, como os governos nacionais existentes no Velho Continente (como é o caso do nosso pobre Portugal) se constituem como meras vereações. O poder soberano, sobre a paz e a guerra, sobre a vida e a morte, já não faz parte das suas competências.
Referências:
Johnson, Dave, Nuclear Weapons in Russia’s Approach to Conflict, Paris, Fondation pour la Recherche Stratégique, November 2016.
Warden, John K., Limited Nuclear War: The 21st Century Challenge for the United States, Livermore Papers on Global Security Nº4, Lawrence Livermore National Laboratory & Center for Global Security Research, July 2018.
Kagan, Donald, et alia, Rebuilding America’s Defenses. Strategy, Forces and Resources for a New Century, Project for the New American Century, Washington, D.C., 2000.
Xia, L., Robock, A., Scherrer, K. et al. Global food insecurity and famine from reduced crop, marine fishery and livestock production due to climate disruption from nuclear war soot injection. Nature Food (2022). https://doi.org/10.1038/s43016-022-00573-0
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 12 de julho de 2023, página 29.